domingo, 9 de junho de 2013

Os desafios de ensinar e aprender



Clara Maria C. Brum de Oliveira

A pedagogia configura uma área do conhecimento humano que analisa de maneira rigorosa e sistemática a prática educativa em suas diversas nuances. Nesse sentido, José Carlos Libâneo a considera uma ciência da educação. Portanto, nesta aula, vamos investigar um pouco mais a educação, sob o olhar de um professor reflexivo que, nos dizeres de Marco Lorieri, acredita na capacidade de pensamento e reflexão e compreende o ser humano como criativo. Nesse horizonte, busca-se uma educação que pretende trilhar um caminho alternativo ao de mero reprodutor de concepções e práticas que somente se justificam numa relação de poder (LORIERI, 2004, p. 16).

Antes de prosseguir assista ao vídeo do prof. José Carlos Libâneo sobre o perfil do professor: http://www.youtube.com/watch?v=6kk__FXVwC0


Educação: techne, arete e paidéia

A educação é uma atividade humana que se afigura em todas as épocas. Para os gregos, era o cumprimento de mandamentos, tais como: honrar os deuses, honrar pai e mãe etc. Também era concebida como um techne, a transmissão de conhecimentos e aptidões profissionais – um conhecimento técnico capaz de ser transmitido por um instrutor. O termo Paidéia que frequentemente é apresentado como a educação do jovem grego, surgiu apenas no séc. V a.C., limitado a um contexto muito específico: a educação de meninos. Além de paidéia e techne, o termo que estaria na história do pensamento grego antigo era arete, ou seja, virtude, expressão de um ideal de vida que buscava a excelência humana (JAEGER, 1989, p. 18-19). Nesse contexto, pode-se inferir que a necessidade de conhecimento sempre esteve relacionada ao trabalho, à sociedade e à cultura e se desvela como uma estratégia para a existência coletiva (SEVERINO, 2004).

Assim, conhecimento algum pode prescindir de uma experiência histórica, coletiva e, sobretudo, política. Segundo Antônio Joaquim Severino (2004, p. 24, grifo do autor) o compromisso pedagógico com a educação não pode descurar de um tecido social que é o solo de todas as relações, pois

Os homens, para que sejam especificamente humanos, têm de habitar uma societas (...). Mas é preciso observar que essa trama de relações sociais que tece a existência real dos homens não se caracteriza apenas como coletividade gregária dos indivíduos, como ocorre nas ‘sociedades’ animais; um elemento específico interfere aqui, mais uma vez marcando uma peculiaridade humana: a sociedade humana é atravessada e impregnada por um coeficiente de poder, ou seja, os sujeitos individuais não se justapõem, uns ao lado dos outros, em condições de simetria igualdade, mas se colocam hierarquicamente, uns sobre os outros, uns dominando os outros. Torna-se assim uma sociedade política, uma cidade. Esse coeficiente que marca nossas relações sociais como relações políticas e que caracteriza nossa prática social envolve os indivíduos na esfera do poder.

A partir da ótica de uma sociedade política, percebemos que existem muitas formas de se conceber a educação. Uma delas está na relação que se estabelece com o poder. Entendendo-se pelo termo poder algo que se “baseia tanto na força quanto na crença” (CHALITA, 2005, p. 22).

Até onde se pode verificar, qualquer atividade humana está inserida em relações de poder e a docência não teria uma destinação diferente. Há algumas tendências na interpretação do papel da educação na sociedade: vamos conhecê-las?


Educação como reprodução da sociedade.

Quando observamos a possibilidade da educação como reprodução, uma das leituras possíveis, não podemos esquecer a contribuição de Louis Althusser* (1918-1990) quando tematizou os aparelhos ideológicos do Estado e, nesse horizonte, promoveu uma visão crítica da Educação.

[*Louis Althusser (1918 – 1990) foi considerado um dos principais filósofos do estruturalismo francês, ao lado de Claude Lévi-Strauss, Jacques Lacan, Michel Foucault e Jacques Derrida. Filiou-se ao pensamento marxista e investigou o Estado a partir da concepção de repressão e ideologia.]

A questão fundamental pode ser expressa da seguinte maneira: O que se aprende? Para quem? Por quê? Aprende-se uma maneira de ser e fazer à moda capitalista (ALTHUSSER, 1985, p. 57-58). Na esteira da clássica divisão da sociedade em dois níveis elaborada por Marx, Althusser investiga quais os aparelhos ideológicos do Estado e como agem.

O Estado visto como aparelho repressivo exerce sua função através de instituições que colaboram na reprodução do modo capitalista. Temos, portanto aparelhos repressivos, identificados como o Governo, Administração Pública, Exército, Política, Tribunais, prisões. E os aparelhos ideológicos, tais como: a escola, igrejas, sindicatos etc., que utilizam  ideologias arraigadas por muito tempo na cultura e que expressam valores e ideais de uma classe dominante (MARQUES, p. 4).

E como acontece? Segundo observou Althusser, cria-se uma visão de mundo que se perpetua, encoberta e dissimula e são transmitidas por aqueles que, por sua vez, foram criados neste sistema. Por isso, para o autor o aparelho ideológico  mais significativo é a escola – a educação. Porque induz e reproduz um modelo, sob o manto da neutralidade. Nesse horizonte comenta Rafael da Silva Marques (p. 5):

Quanto aos AIE [Aparelhos Ideológicos de Estado]; deve-se ter em mente que é por eles que o modo de produção capitalista se repete e incorpora nas mentes das pessoas. A educação trazida pelos professores, criados já com base neste sistema, transmite-se a seus alunos e cria, na visão destes mesmos alunos, uma espécie de ética da exclusão social embasada na lei do maior ou menor esforço, onde tudo está ao alcance de quem efetivamente quiser trabalhar.

Assim, tais ideias ocultam ou representam mal as relações sociais e possibilitam adequações, ajustamentos para o funcionamento das engrenagens sociais (VAISMAN,  2006, p. 256).

Sobre este ponto, assista a um trecho do filme “Pro dia nascer feliz”, disponível no Youtube - documentário sobre o sistema educacional brasileiro, do diretor João Jardim:

Alguns exemplos de ideologias:

“O trabalho dignifica o homem” [esta tese independe de uma realidade em que o ser humano é visto como mercadoria, embrutece e é coisificado (reificação).]

“A educação é um direito de todos” [as estatísticas sobre a educação no Brasil revelam uma realidade bem diferente!]

“O salário é a recompensa do trabalhador” [Esquece-se da mais-valia, da exploração do assalariado.]


Antes de prosseguir, assista ao documentário Ilha das Flores, disponível no Youtube e, em seguida, repense a teoria dos aparelhos ideológicos de  Louis Althusser:


A experiência do processo educativo está presente em nossas vidas, desde a tenra idade, deixando marcas em nossa personalidade, fornecendo as condições de possibilidade para reprodução de um modelo de sociedade em que os papéis sociais já estão definidos e através da aprendizagem de alguns saberes há a inculcação de maneiras de ser e agir que a perpetuam (LUCKESI, 1994, p. 47).

Nesse modelo reprodutivo, alerta-nos Luckesi (1994) há uma condição trágica: todo esforço será em vão, já que sempre haverá reprodução de modelos que justificam e legitimam papéis sociais. Essa é uma reflexão importante.


Educação como redenção e transformação.

Um das tendências na interpretação da educação é a leitura desta como uma dimensão redentora. O sentido do termo de redenção nos direciona ao ato ou efeito de redimir e, sem dúvida, a uma teoria de cunho religioso a partir da teologia cristã. Nesta concepção, há uma preocupação em integrar seres humanos à sociedade vista como um todo orgânico. Integrar aqueles que por diversas razões experimentam desvios e estariam à margem da harmonia desse todo: “deve  configurar e manter a conformação do corpo social” (LUCKESI, 1994, p. 38).

Segundo Luckesi (1994, p. 38), esse modelo encontra raízes no pensamento de Comênio, educador do século XVII, cuja obra mais famosa é Didatica Magna e que compreendia, numa visão fundada em aspectos religiosos, que o antídoto ao desequilíbrio social estaria no sentido de redenção, renovando o ser humano pela educação. Nesse sentido assevera Luckesi (1994, p. 40-1) que

Vale observar que essa concepção e educação redentora da sociedade perdurou por épocas. Os enciclopedistas da Revolução Francesa (pedagogia tradicional) e os pedagogos do final do século passado (pedagogia nova continuam com essa mesma compreensão. Os enciclopedistas acreditavam na redenção da sociedade pela educação das mentes e os pedagogos da escola ativa do final do século passado e início deste acreditavam na redenção da sociedade através da formação da convivência entre as pessoas, a partir do atendimento às diferenças individuais de cada um.
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A essa tendência de dar à educação a finalidade filosófico-política de redimir a sociedade, Dermeval Saviani dá a denominação de ‘teoria não crítica da educação’, devido ao fato de ela não levar em conta a contextualização crítica da educação dentro da sociedade da qual ela faz parte. (...) Quantos não são aqueles [hoje] que trabalham em educação e consideram ingenuamente os seus atos como atos isentos de comprometimentos com a política e totalmente voltados para a redenção da sociedade?

Por outro lado, assumir os ideais de uma educação como transformação, outra tendência, significa pretender um novo modelo de educação baseado numa prática docente, igualmente nova, comprometida com a capacidade reflexiva e que busque metodologias que não tomem como ponto de partida um modelo de ensino mecânico e repetitivo, descontextualizado.  A educação não está a serviço da conservação. Nos dizeres de Cristina Dias Allessandrini (2002, p. 166),

para que possamos ensinar nossos alunos, precisamos rever nosso próprio modo de aprender, nosso modo de construir a experiência. (...) Portanto, refletir a respeito do que vivenciamos quando alunos pode ser uma excelente maneira para não reproduzirmos com nossos aprendizes o mesmo caminho que trilhamos, por vezes carregados de antigas aprendizagens que observamos e reconhecemos como aprisionantes.

É nesse contexto que o professor reflexivo encontra a sua destinação mais importante. Deve buscar no aprofundamento teórico, através da pesquisa, refletir as conexões e articular saberes para compreender o movimento histórico e retornar à  sua prática preparado para enfrentar desafios e aporias. Por quê? Porque uma pesquisa inovadora se afasta da concordância, da reprodução, da ingênua visão redentora e instaura o desacordo em solo fértil. As maiores descoberta científicas que provocaram revoluções científicas foram as que nasceram do desacordo/discordância e estimularam outras investigações. Como afirma Luckesi (1994, p. 48):

A terceira tendência [educação como transformação da sociedade] é a que tem por perspectiva compreender a educação como mediação de um projeto social. Ou seja, por si, ela nem redime, nem reproduz a sociedade, mas serve de meio, ao lado de outros meios, para realizar um projeto de sociedade; projeto que pode ser conservador ou transformador. No caso, essa tendência não coloca a educação a serviço da conservação. Pretende demonstrar que é possível compreender a educação dentro da sociedade, com seus determinantes e condicionantes, mas com possibilidade de trabalhar pela sua democratização.

Assim, considerando os novos tempos, a sociedade mediada pela informação e tecnologia, bem como marcada por um multiculturalismo, como podemos entender o conceito de mediação que está na base dessa percepção filosófica sobre a educação? Pense sobre isso!


Para uma reflexão final, assista ao vídeo Aprender a aprender: uma educação mediadora.


Referências:
  
ALLESSANDRINI,  Cristina D. O desenvolvimento de competências e a participação pessoal na construção de um novo modelo educacional. In: PERRENOUD, P. et al.  As competências para ensinar no século XXI: a formação dos professores e o desafio da avaliação.  Porto Alegre: Artmed,  2002. p. 157-176.

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 2. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982.

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VAISMAN, Ester. Althusser:  ideologia e aparelhos de Estado – velhas e novas questões. In: Projeto História, São Paulo, 33, p. 247-269, dez 2006. Disponível em: < http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/viewFile/2294/1388>. Acesso em: 30 abr. 2011.