terça-feira, 21 de maio de 2013

A Antiguidade e os pressupostos do conhecimento científico


                                                                                                                                             Clara Maria C. Brum de Oliveira     

“Não entre quem não for geômetra”
(PLATÃO apud REALE, 1990, p. 286)

Se pensarmos no advento da metalurgia, tecelagem, cerâmica, agricultura e a escrita, por volta do ano 3000 a.C., percebemos que o desenvolvimento da técnica resultou da observação. Sem mencionar o conhecimento da astronomia e matemática desenvolvido pelos babilônicos. É neste ponto que podemos dizer que os gregos apresentaram uma postura muito específica: não viveram mergulhados na técnica ou prática, mas na teoria.

Os primeiros filósofos produziram diferentes explicações para os fenômenos naturais, sem recorrer às explicações mitológicas (LLOYD, 1970, p. 10-15). Sem dúvida, os primeiros filósofos-cientistas, foram os pré-socráticos. Eles se preocuparam com a origem da vida e com o movimento da natureza.

Apesar de o conhecimento matemático nos levar à tradição fenícia e egípcia, os gregos transformaram a sabedoria prática de tais povos em conhecimento científico. Assim apresentaram a matemática como ciência, operando com números, figuras, relações e proporção. Tais conhecimentos se tornaram atividades típicas do pensamento abstrato, ou seja, puramente intelectuais. Nesse novo modo de proceder alcançava-se o conhecimento verdadeiro e universal, atribuindo à matemática o status de saber extraordinário. Foi por essa razão que Platão colocou a matemática como um pressuposto ao pensamento filosófico.

Encontramos em seu pensamento a primeira formulação clássica da Filosofia, ou seja, o conhecimento como objeto de investigação. Nesse sentido, apresentou uma preocupação direta sobre o método, indagando se é realmente possível o conhecimento. Este pensador adotou o método explicativo da matemática e apresentou o mundo material como cópia do mundo das idéias, ou seja, o mundo do pensamento.

Este mundo do pensamento que chamou de mundo inteligível foi concebido como o mundo original, o lugar do conhecimento verdadeiro. Já o mundo material ou sensível, o nosso mundo fenomênico, era visto como o lugar das coisas perecíveis, mutáveis e, portanto imperfeitas.

O fato é que Platão considerou a matemática como um prelúdio à filosofia (ARANHA; MARTINS, 2002, p. 136-137). Por isso, podemos dizer que desde Pitágoras até Platão o pensamento filosófico priorizou a razão como o caminho para o conhecimento verdadeiro, a episteme. Assim, podemos destacar que este pensador valorizou a atividade intelectual enquanto contemplação desvinculada da experiência cotidiana.

Para enriquecer seu olhar, acesse o documentário “A história do número 1 – parte 10 – que fala sobre os egípcios e sobre Pitágoras.”

Apesar da genialidade de Platão, Aristóteles (384-322) foi considerado o sistematizador do pensamento ocidental, tendo contribuído no campo das Ciências Naturais, História da Filosofia, da Psicologia, das leis da argumentação e da Lógica.

É bom esclarecer que não encontramos neste pensador a experimentação, mas a observação. Há algumas justificativas para isso e uma delas decorre do fato de estarmos diante de uma cultura que desprezava as técnicas manuais. Estamos numa cultura cujo paradigma é o método da contemplação. Por conseguinte, Aristóteles estava interessado em saber os fundamentos ou as causas e não a descrição dos fenômenos.

Na compreensão de Aristóteles, a física é a ciência que trata do ser em movimento cujos pressupostos estão na relação ato-potência e na teoria das quatro causas. Nesse sentido, todos os seres ocupam um lugar natural conforme sua essência. Como estudioso do pensamento pré-socrático, partiu da teoria de Empédocles que estabeleceu como matéria-prima originária em todos os seres os quatro elementos, ou seja, a água, a terra, o fogo e o ar. Interessante é que esta teoria pré-socrática retomada por Aristóteles permaneceu até o séc. XVIII, quando foi substituída pela teoria das substâncias compostas de Antoine-Laurent de Lavoisier (1743-1794), cientista francês, considerado o criador da Química Moderna (autor da célebre frase: "Na Natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma").

Na astronomia, Aristóteles fundamentou suas idéias a partir do pensamento de um dos discípulos de Platão que havia pensado no modelo geocêntrico, segundo o qual a Terra ocupava o centro do Universo. Esse modelo também foi conhecido como o modelo das esferas homocêntricas. Sabe-se que um pensador da cidade de Samos chamado Aristarco (310-230 a.C.) chegou a formular a tese heliocêntrica, sem qualquer sucesso já que os gregos eram adeptos do geocentrismo (REALE, 1990).

No modelo astronômico, Aristóteles estabeleceu uma hierarquia dividindo o universo em mundo sublunar e supralunar. O mundo sublunar compreende a Terra como um corpo imóvel, lugar natural de seres móveis, perecíveis, em movimento retilíneo para baixo e para cima. O mundo supralunar é constituído pela Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter, Saturno e as estrelas fixas. São corpos que segundo o filósofo são constituídos pela quinta-essência e não pelos quatro elementos (fogo, água, terra e ar). São corpos perfeitos e realizam o movimento circular que para a tradição grega seria o movimento que expressa perfeição (ARANHA; MARTINS, 2002, p. 138-139).

Ao observar o céu, Aristóteles percebeu que tudo permanecia em sua perfeição, sem mudança, a despeito do movimento dos astros. Havia uma harmonia perceptível a olho nu. A Terra ocupava um lugar de destaque, mas permanecia imóvel. Assim, realmente acreditava na imobilidade da Terra e para prová-la afirmava que bastaria um observador lançar um objeto para cima que o mesmo retornaria ao lugar de origem. Ora, se a Terra se movesse, tal objeto cairia em outro lugar, pois no momento em que estivesse no ar, a Terra se deslocaria (ARANHA; MARTINS, 2002).

O universo aristotélico era finito, esférico e organizado da seguinte maneira: a Terra no centro, era constituída pelos 4 elementos (água, fogo, terra e ar), seguida da Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno. Os corpos celestes seriam constituídos por uma quinta-essência: o éter, concebido como um elemento puro, transparente e sem peso, que contrastava com os quatro elementos constituintes da Terra, sujeitos a mudanças e que, portanto perecíveis. Esse era o sistema do mundo concebido por Aristóteles, constituído por 11 esferas concêntricas em movimentos circulares perpétuos (ARANHA; MARTINS, 2002).
  
Essa tese astronômica demonstra que a concepção geocêntrica era o paradigma da cultura grega. A única tentativa de uma teoria heliocêntrica aconteceu por volta do séc. III a. C., como Aristarco de Samos. Este pensador grego supôs as estrelas fixas e imutáveis, mas a Terra girando em torno do Sol em movimento circular.  Assim, concebeu o Sol como centro em um cosmo infinito. Todavia, por volta do ano 150 a.C., matemáticos gregos bloquearam sua tese e ressaltaram o sistema geocêntrico.

É interessante que a astronomia aristotélica pode nos parecer risível, mas foi totalmente incorporada por Cláudio Ptolomeu (83-161 d.C.) e figura na obra deste cientista grego, “O grande tratado” (Almagesto) como sistema do mundo. O fato é que esta teoria perdurou como verdade incontestável durante o mundo antigo, toda a Idade Média, encontrando óbice no pensamento de Nicolau Copérnico e mais tarde com Galileu Galilei (ARANHA; MARTINS, 2002).

[ “O grande tratado” - um estudo sobre astronomia que apresenta as mais importantes teses da Antiguidade Clássica. Este cientista grego da fase alexandrina absorveu o conhecimento astronómico babilónico e grego. Nesta obra,  há a tese geocêntrica estudada pelos gregos antigos (REALE, 1990).


Sobre este ponto, veja o documentário sobre o nascimento da ciência e observe a admiração que os povos antigos nutriam pelo estudo das estrelas e a relação que estabeleceram entre a ciência e a vida humana.


No final do mundo antigo, o império alexandrino produziu mudanças significativas que assinalaram o fim da época clássica e o início de uma nova era – a fase helenística.  Nesta fase, o domínio macedônico sobre a as cidades gregas impulsionou o surgimento de novas filosofias que teorizaram uma realidade diferente.

Os gregos até Aristóteles acreditavam que os povos orientais eram  verdadeiros bárbaros, mas o ambicioso projeto político de Alexandre Magno modificou esse olhar. Nesta ocasião Atenas ainda se mantinha como o centro filosófico do mundo conhecido, mas gradualmente as cidades como Pérgamo, Rodes e Alexandria se destacaram num novo cenário: o cenário da cultura científica.

A cidade de Alexandria construída por Alexandre junto à foz do Nilo se tornou a capital cultural do mundo helenístico. Com terra fértil para o cultivo, localização privilegiada para o comércio, atraiu povos de variadas culturas, bem como muitos intelectuais gregos.  Nesta famosa cidade, encontramos o “Museu”, instituição sagrada dedicada às Musas, protetoras das atividades intelectuais com um acervo para estudiosos interessados em pesquisas médicas, biológicas e astronômicas. Ao lado, como um anexo, a “Biblioteca”, contendo inicialmente quinhentos mil livros (MARCONDES, 1997).

Nessa atmosfera espiritual, a matemática ocupava lugar de destaque e, nesta matéria, Euclides de Alexandria (360-295 a.C.) foi considerado um dos maiores matemáticos do mundo antigo. Criador da famosa geometria euclidiana que perdurou por muitos séculos. Sabe-se que recebeu influências de Pitágoras e de Platão e escreveu uma obra chamada Elementos, em 13 volumes, versando sobre geometria plana, figuras poligonais, círculos, proporção e teoria dos números. Sua obra se manteve viva até o séc. XIX (REALE, 1990).
Além de Euclides, Apolônio de Perga que viveu no séc. III a.C., também foi considerado um dos maiores matemáticos gregos depois de Euclides e de Arquimedes. Apolônio estudou a matemática e expôs os três tipos cônicos: a elipse, a parábola e a hipérbole. Se este pensador tivesse aplicado sua descoberta à astronomia, não teria dado a Kepler, muitos séculos depois, o mérito de revolucionar as teorias das órbitas planetárias (REALE, 1990, 288).
Arquimedes (287 – 212 a.C.) foi considerado o mais genial dos cientistas gregos,  viveu e usou suas invenções para proteger a cidade de Siracusa. Escreveu inúmeras obras e inventou máquinas engenhosas que defenderam por longo tempo a sua cidade do ataque das tropas romanas. Dizem que Cícero ao encontrar seu túmulo, mandou restaurá-lo como prova de grande veneração (REALE, 1990, 288).
Arquimedes lançou as bases da hidrostática que resultou no princípio que leva o seu nome, o princípio de Arquimedes, segundo o qual “as grandezas mais pesadas do que o líquido, abandonas no líquido, são transportadas para baixo, até o fundo, e serão tanto mais leves no líquido quanto é o peso do líquido que tem tal volume quanto o volume da grandeza sólida” (REALE, 1990, 289).

Em mecânica criou o princípio da alavanca. Arquimedes pensou numa reta em forma de haste, apoiando-se sobre um ponto de apoio, com dois pesos iguais nos extremos e em distâncias iguais do centro, em equilíbrio. Se as distâncias forem desiguais, haverá uma inclinação para um dos lados. Com essa experiência chegou à lei segundo a qual duas grandezas estão em equilíbrio a distâncias que estejam em recíproca proporção às suas próprias grandezas.

A tradição relata que Arquimedes teria dito a seguinte frase: “ Dá-me um ponto de apoio e te erguerei a Terra!” enquanto  utilizava o sistema de alavancas para descer ao mar uma grande embarcação (REALE, 1990, 291).  Pesquisadores atribuem a Arquimedes muitas invenções interessantes que vão desde catapultas até várias combinações de roldanas. Mas o episódio mais interessante sobre a vida de Arquimedes é o que menciona em que contexto o matemático teria gritado “Eureka!” que em grego significa “Descobri!” Vejamos 

Hiéron, rei de Siracusa, quis oferecer uma coroa de ouro no templo. Mas o ourives subtraiu uma parte do ouro, substituindo-o por prata, que combinou com a restante parte de ouro na liga. Aparentemente, a coroa ficou perfeita. Mas, surgindo a suspeita do roubo e, como Hiéron não podia dar corpo à suspeita, pediu a Arquimedes que lhe resolvesse o caso, refletindo sobre o que estava ocorrendo. Arquimedes começou a pensar intensamente na questão. E, num momento em que se preparava para tomar banho, observou que, ao entrar na banheira (que, naquela época era uma tina), saía água na mesma proporção do volume do corpo que entrava. Assim, de repente, intuiu o sistema com o qual poderia determinar a pureza ou não do ouro da coroa. (Arquimedes prepararia dois blocos, um de ouro e um de prata, cada qual de peso igual ao da coroa; imergi-los-ia na água, medindo o volume de água deslocado por cada um deles e a relativa diferença; depois, verificaria se a coroa deslocaria um volume de água igual ao deslocado pelo bloco de ouro; se não acontecesse isso, significaria que o ouro da cora havia sido alterado.) No entusiasmo da descoberta, precipitou-se para fora da tina e correu para a casa, nu como estava, gritando “descobri, descobri”, que em grego se diz “eureka”, exclamação que se tornou proverbial, estando em uso até hoje. (REALE, 1990, 292).

Os gregos buscaram respostas racionais para os problemas da vida e descobriram no conhecimento matemático uma fonte inesgotável de saber. Desde os pré-socráticos, a matemática manteve-se como um saber teórico. Sabe-se que somente com Pitágoras é que foi introduzido no ensino destinado à formação de filósofos, mas restrito a um grupo seleto.  Bem mais tarde, o ensino da matemática (aritmética, geometria, música e astronomia) foi reintroduzido na educação do jovem grego com os sofistas, em especial, Hípias de Elis (460-399 a.C.).

O desenvolvimento do pensamento científico, na fase helenística, nos direciona à seguinte idéia: o encontro de culturas na região e o espírito de liberdade que os pensadores gregos experimentaram, em solo egípcio, sob a proteção de Ptolomeu, foram fundamentais para o desenvolvimento de uma nova postura, voltada para a técnica sem, no entanto, sair do paradigma ou modelo do saber teórico.

A ciência de Alexandria estava distante dos dogmas filosóficos e preconceitos de uma cultura que colocara o escravo no lugar da máquina, razão pela qual o Senhor podia evitar esforços ou questões práticas do cotidiano das poleis (cidades-estados gregas, plural de polis) gregas. Os pensadores poderiam dedicar-se à atividade da razão, sem se preocuparem com o mundo da vida (REALE, 1990).

Veja o documentário “A história do número 1 – parte 11 – que fala sobre Arquimedes.”


Os precursores da ciência moderna: o humanismo renascentista e a superação do paradigma teocêntrico


A expressão “Magister dixit...” (o mestre disse...), nos permite compreender um pouco da postura intelectual predominante durante o período denominado Idade Média. Fase que antecede o movimento renascentista em que percebemos a importância conferida ao princípio da autoridade em detrimento da reflexão livre e da investigação da natureza.

Muitos estudiosos caracterizaram os séculos da Idade Média como uma época rude, marcada pela fome, pelo desaparecimento da vida intelectual, assolada pela violência, em que a Igreja ocupara o lugar da Roma Imperial (MANCHESTER, 2004, p. 27).

Acredita-se que por volta do séc. XIII durante o pontificado de Inocêncio III (1198-1216) reapareceram escritos aristotélicos até aquela data desconhecidos. Na verdade, a herança cultural da Grécia começava a reaparecer, reacendendo problemas e oportunizando novos caminhos. O movimento ficou conhecido pelo nome italiano Rinascimento, cuja data inicial não é precisa, mas  acreditamos que caracterizou o início do séc. XV e o séc. XVI.

O que encontramos nessa fase? 

Até este momento, durante os 1436 anos que marcaram a Idade Média, com seus 211 Papas, a Igreja era indivisível, a vida a pós a morte era concebida como certeza absoluta e acreditava-se que tudo já era conhecido. O mundo se resumia ao cosmo descrito por Cláudio Ptolomeu: a Terra o centro, na verdade a Europa, tendo ao seu lado a Terra Santa e o norte da África. Há relatos que os cartógrafos medievais, quando chegavam aos limites geográficos conhecidos, escreviam em seus mapas: “Cuidado: Dragões à espreita além deste ponto” (MANCHESTER, 2004, p. 57).


Não perderemos tempo aqui em descrever a Idade Média, mas observar que o movimento renascentista que se configura no interior da mentalidade medieval não pode ser visto apenas como um movimento filosófico, mas foi essencialmente uma mudança na vida em todos os seus aspectos: sociais, políticos, morais, religiosos e literários. Sabemos que tudo começou com nossos navegadores que se afastaram do mundo conhecido e provocaram o desenvolvimento de novas técnicas para dar conta do novo empreendimento marítimo.

Nesse caminho, autores gregos e latinos ocuparam espaços, marcando início de uma nova época, uma nova leitura de antigos textos, exigindo dos estudiosos que deixassem de lado as traduções medievais e buscassem comentadores gregos, além de outros pensadores até então desconhecidos. Talvez a essência desta fase esteja no modo como revigoraram o passado na tentativa de compreender o presente.


Mas o termo Renascimento apareceu na obra de Jacob Burckhardt (REALE, 1990, p. 24-25), publicada em 1860, no sentido de movimento de exaltação da vida mundana e liberdade de pensamento oposta à mentalidade medieval. Um espírito que rompendo com o pensamento medieval inaugura uma nova visão de mundo. Por conseguinte, do ponto de vista da história do pensamento, o Renascimento é visto como as raízes do mundo moderno cujo marco inicial está na revolução científica operada por Galileu Galilei (1564-1642).

[O termo ganhou notoriedade com a obra de Jacob Burckhardt, sob o título A cultura do renascimento na Itália, publicada em 1860, referência importante no séc. XIX.]


A Revolução Científica


O período denominado como da “revolução científica” marcou uma fase que se estende desde a publicação da obra Da Revolução de Esferas Celestes (De revolutionibus orbium celestium) de Nicolau Copérnico, em 1543, até a publicação da obra Princípios Matemáticos da Filosofia Natural (Philosophiae naturalis principia mathematica) de Isaac Newton, em 1687. Mas o que significou essa revolução? Na verdade foi uma revolução astronômica, uma mudança na imagem do mundo que teve como expoentes: Copérnico, Tycho Brahe, Johannes Kepler, Galileu Galilei e Isaac Newton. Uma mudança gradual sobre o homem, sobre a ciência, sobre o trabalho científico e principalmente sobre a relação entre o saber científico e religioso.

Nesta nova fase cai por terra a cosmologia aristotélico-ptolomaica, pois Copérnico colocou o Sol no centro do mundo; Tycho Brahe desenvolveu a idéia de órbita; Kepler apresentou o movimento elíptico dos planetas; Galileu afirmou que a Lua é da mesma natureza que a Terra, inventou o telescópio e investigou o céu, separando com isso a ciência antiga dos novos tempos. Newton desenvolveu sua teoria gravitacional.

Nicolau Copérnico

Nicolau Copérnico (1473 - 1543) foi um pensador polonês, viveu numa época em que a astronomia de Aristóteles e o sistema de Cláudio Ptolomeu vigoravam. Tais sistemas compreendiam a Terra como central, imóvel, o movimento circular como perfeito e a finitude do universo.  Tais ideias estavam adequadas à tese de um universo criado em função do homem.

Mas atormentado com o problema do movimento releu várias vezes as obras  dos filósofos antigos na tentativa de  encontrar uma resposta. Ao reler Cícero observou que este pensador romano mencionara a opinião de um pensador antigo do séc. V. a.C. chamado Iceta de Siracusa, segundo o qual a Terra estaria em movimento. Continuando em suas pesquisas descobre ainda que os pitagóricos Filolau e Ecfanto, bem como Heraclides de Ponto, que acreditavam que a Terra girava. Encorajado nesta tese supostamente absurda afirmou que tudo estava em movimento.  Em síntese, Copérnico defendeu as seguintes teses: 1. A Terra é esférica; 2.  A Terra se move em um círculo orbital em torno do seu centro, girando também sobre o seu eixo; 3. A Terra não era o centro do mundo, mas o Sol (REALE, 1990, p. 226-227). Com tais idéias Copérnico conseguiu se tornar o ponto de partida para pensadores posteriores, o ponto de partida para uma nova astronomia.

Sua obra foi inicialmente considerada por teólogos influentes como instrumentalista, ou seja, suas descrições seriam tomadas apenas como instrumentos úteis para efetuar previsões e dar explicações sobre os corpos celestes. Na verdade o próprio Copérnico a considerava uma teoria realista, porque entendia que esse era o compromisso do filósofo: buscar a verdade.

Tycho Brahe

O dinamarquês Tycho Brahe (1546-1601), depois de Copérnico, foi um virtuoso da observação astronômica. Ocupou lugar de destaque, sendo sucedido após sua morte por seu jovem assistente Johannes Kepler. Através de suas acuradas observações, ressalte-se, a olho nu, resolveu vários problemas que a astronomia enfrentava em sua época.

Brahe inovou ao observar a trajetória dos cometas que o levou a afirmar que no universo existiam órbitas ou trajetórias livres, em todas as direções, refutando a tese das “esferas materiais”, ou seja, as esferas concêntricas do sistema aristotélico. Acrescentou que os cometas revelavam uma órbita oval e não circular como acreditavam os antigos pensadores da cosmologia tradicional.

Brahe não aceitava a tese da mobilidade da Terra de Copérnico, nem acreditava no sistema do mundo apresentado por Cláudio Ptolomeu. Tomando as duas teses como ponto de partida, este pensador investigou minuciosamente o sistema do mundo, manteve algumas observações do sistema copernicano, mas confirmou que os planetas giravam em torno do Sol. Sendo que a Lua e o Sol, por sua vez, giravam em torno da Terra (REALE, 1990, p. 227-233).

Johannes Kepler

Diferente de seu mestre Tycho Brahe, Johannes Kepler (1571-1630) partiu da tese copernicana, misturando-a as idéias do neoplatonismo que valorizava a harmonia do universo. Assim, Kepler acreditava que a Natureza estava ordenada segundo leis matemáticas. Isso nos lembra Platão!

Seus estudos configuram o que entendemos hoje por um procedimento verdadeiramente científico que começa com a proposta de uma questão-problema, seguida de uma série de conjecturas para solucioná-la que passam por uma análise minuciosa até se alcançar uma teoria possível. Nesse procedimento, percebe-se a paixão do investigador ao realizar sua pesquisa, ao enfrentar as desilusões e a ansiedade diante de muitos fracassos.

Nem Ptolomeu, nem Copérnico, Kepler chegou à conclusão que os planetas moviam-se em órbitas elípticas, com velocidades variáveis, afastando a tese dos círculos concêntricos ou esferas ovais como acreditavam. Este pensador elaborou três leis importantes: 1ª as órbitas dos planetas são elipses das quais o Sol ocupa um dos focos; 2ª a velocidade orbital de cada planeta varia de tal modo que a linha que liga o Sol e o Planeta cobre, em iguais intervalos de tempo, iguais proporções de superfície da elipse; 3ª os quadrados dos períodos de revolução dos planetas estão na mesma relação que os cubos das respectivas distâncias do Sol (REALE, 1990, p. 244-245).


Galileu Galilei

Galileu Galilei (1564-1642) foi o fundador da ciência moderna e o teorizador do método científico, bem como da autonomia da pesquisa científica. Suas idéias seguiram as teses do copernicanismo aperfeiçoado pelo uso da luneta. Suas descobertas renderam-lhe a acusação de heresia, sendo obrigado pelo Santo Ofício a abjurar as idéias que afirmara. Mais tarde foi condenado a prisão perpétua, posteriormente comutada em prisão domiciliar.

Com o aperfeiçoamento da luneta inventada pelos holandeses, Galileu começou a acumular uma série de provas que afastavam os obstáculos que se interpunham à aceitação do sistema heliocêntrico de Copérnico. Deste episódio temos que destacar que ao usar a luneta, este pensador inovou ao usar um objeto como instrumento científico, pela primeira vez na história. Essa conduta atacava a postura do mundo científico da época que não se perturbara com a descoberta daquele instrumento e, o que é pior,  o considerava danoso porque acreditavam que poderia entontecer o espírito do observador.

Numa época em que se usavam sanguessugas para curar pneumonia, usar um instrumento para vasculhar o céu não parecia nada racional. Todavia, com esse instrumento, Galileu observou montanhas e vales sobre a Lua e um amontoado de inumeráveis estrelas jamais vistas, ideias que se afiguravam perigosas às verdades da fé.

Este pensador proclamou a veracidade do sistema copernicano do mundo, reivindicando a autonomia da ciência quando afirmou que a Bíblia não era um tratado de astronomia e não poderia conter informações sobre a constituição e os movimentos dos céus e das estrelas. Atacado pelos teólogos, mas não contido, lançou mão das sensatas experiências e das demonstrações certas, considerando que a ciência não deveria ser um saber a serviço da fé porque se fundamenta em razões diversas. A ciência tem compromisso com a descrição verdadeira da realidade.

A postura científica de Galileu desvelou o núcleo essencial do método científico, ou seja, a ciência é um saber que procede de um método baseado em experiências e demonstrações que partem de uma hipótese. Não pura simplesmente uma observação comum porque estas podem errar, mas um experimento que pressupõe correção - ajustes. Uma interrogação metódica da natureza. Um experimento científico em que o espírito ativo faz suposições e extrai conseqüências, numa relação mútua de correção e aperfeiçoamento.

Assim, podemos afirmar que a contribuição mais importante de Galileu foi o desenvolvimento do método científico cujos princípios são: 1. Observar os fenômenos tais como ocorrem, afastando preconceitos ou conceitos de natureza religiosa; 2. Submeter as idéias à experimentação, ou seja, verificação; 3. Descobrir a regularidade matemática em todos os fenômenos observados.

Sobre este ponto, veja os documentários sobre Galileu e pense sobre as seguintes questões: Por que Galileu Galilei foi condenado? Qual a importância que a história da ciência conferiu ao uso da luneta?

O universo – Além do big bang – 3/9
Galileu: a batalha pelo céu
  
Isaac Newton
  
Isaac Newton (1642-1727) foi um grande investigador experimental que conseguiu sintetizar as duas grandes correntes da ciência moderna: a matematização e a experiência. Inovou quando criou o cálculo infinitesimal, desenvolveu e sistematizou a mecânica, a teoria da gravitação universal, as leis de reflexão e refração luminosas e a teoria sobre a natureza corpuscular da luz.

O primeiro aspecto que devemos observar no pensamento científico de Newton foi seu modelo mecanicista de ciência. O segundo aspecto está no seu método indutivo, ou seja, método científico que consiste em fazer experimentos e observações e, em seguida derivar conclusões gerais mediante indução.

O modelo mecanicista de Newton foi profundamente influenciado pela visão do filósofo e matemático francês René Descartes (1596 - 1650), segundo a qual o universo está em movimento e sua descrição se resume na compreensão das interações básicas de seus componentes para formular matematicamente as leis que os regem. Newton afirmou que a Natureza é simples e uniforme e que o sistema do mundo se equipara a uma grande máquina, cujas partes em funcionamento desvelam leis que podem ser detectadas indutivamente através da observação e experimento.

Sobre este ponto, veja o documentário “O universo – além do big bang” e pense na seguinte questão: Por que os cientistas consideram Newton como um dos maiores pensadores de todos os tempos?


Para enriquecer seu olhar, leia o trecho abaixo que trata da revolução científica.

A formação de um novo tipo de saber, que exige a união da ciência e da técnica 

O resultado do processo cultural que passou a ser denominado de “revolução científica” foi uma nova imagem do mundo que, entre outras coisas, propõe problemas religiosos e antropológicos não indiferentes. Ao mesmo tempo, representou a proposta de uma nova imagem da ciência: autônoma, pública, controlável e progressiva. Mas a revolução científica foi, precisamente, um processo: um processo que, para ser compreendido, deve ser dissecado em todos os seus componentes, inclusive a tradição hermética, a alquimia, a astrologia ou a magia, posteriormente abandonadas pela ciência moderna, mas que, bem ou mal, influíram sobre a sua gênese ou, pelo menos, sobre o seu desenvolvimento inicial.
Mas é preciso ir mais além, já que uma outra característica fundamental da revolução científica é a formação de um saber – a ciência precisamente – que, ao contrário do saber anterior, o medieval, reúne teoria e prática, ciência e técnica, dando assim origem a um novo tipo de “douto”, bem diferente do filósofo medieval, do humanista, do mago, do astrólogo, ou também do artesão ou do artista do renascimento. Esse novo tipo de douto gerado pela revolução científica, precisamente não é mais o mago ou o astrólogo possuidor de um saber privado ou de iniciados, nem o professor universitário comentador e intérprete dos textos do passado, mas  sim o cientista fautor de uma nova forma de saber, público, controlável e progressivo, isto é, de uma forma de saber que, para ser validado, necessita do contínuo controle da práxis, da experiência. A revolução científica cria o cientista experimental moderno, cuja experiência é o experimento, tornando sempre mais rigoroso por novos instrumentos de medida, cada vez mais precisos. [REALE, Giovanni. História da Filosofia: do Humanismo a Kant. São Paulo: Paulus, 1990. V. 2. p. 190-191].

O problema científico

Quando investigamos a trajetória dos grandes cientistas observamos que cada um contribuiu para o desenvolvimento do pensamento científico com teorias, nem sempre verdadeiras, nem totalmente falsas, mas úteis na reavaliação de conceitos e fatos. Importa perceber que todo o conhecimento coloca o problema da verdade, porque acontece na relação entre o sujeito que conhece, o cientista, e o objeto investigado: enunciados  ou fatos. É neste ponto que vale lembrar que o olhar do pesquisador ou cientista não é fortuito, não é um olhar ao acaso, mas rigoroso, metódico e incansável.

Para Karl Popper (1922-1996), a ciência começa com um problema que incomoda o cientista, ou seja, o trabalho científico é precedido pela formulação de um problema e pelo horizonte de expectativas que ele provoca. Assim, motivado por um problema, elabora conjecturas, uma possível solução que será verificada, testada. Nesta lógica, Popper (1977, p. 181) acreditou que o mais importante está na busca pela refutação das teorias científicas, procedimento que desvela uma revolução permanente.


Meu ponto de vista é de (...) que a ciência parte de problemas; que esses problemas aparecem nas tentativas que fazemos para compreender o mundo da nossa experiência (experiência que consiste em grande parte de expectativas ou teorias, e também em parte em conhecimento derivado da observação – embora ache que não existe conhecimento derivado da observação pura, sem mescla de teorias e expectativas).


[ “Formular um problema consiste em dizer, de maneira explícita, clara, compreensível e operacional, qual a dificuldade com a qual nos defrontamos e que pretendemos resolver, limitando o seu campo e apresentando suas características. Desta forma, o objetivo da formulação do problema da pesquisa é torná-lo individualizado, específico, inconfundível” - Rudio, F. V. Introdução ao projeto de pesquisa científica. Apud Lakatos, E. Metodologia científica. São Paulo: Atlas, 2000, p. 139.]


Até aqui estudamos cientistas que buscaram o conhecimento científico como um conhecimento racional, objetivo, verificável, claro, preciso e todos utilizaram um método, ou seja, não agiram ao acaso, mas planejaram seu trabalho. Buscaram fundamento em conhecimentos anteriores significativos.

O conhecimento científico não é definitivo, absoluto ou final, mas experimenta novas indagações, a substituição gradual de hipóteses que provocam até mesmo verdadeiras revoluções. A história do pensamento científico esclarece que o avanço ou processo das ideias não é linear, mas dialético, ou seja, se modificam e se transformam, porque todo investigador pertence a seu tempo e está limitado ao paradigma de sua época,  apesar de conter elementos antecipadores e revolucionários em seu pensamento.

É papel de uma revolução científica superar paradigmas, mas isso não quer dizer que o paradigma que foi superado fique totalmente esquecido. Na verdade, ele pode ser retomado por outro pensador em uma teoria nova. Podemos encontrar a seguinte situação: uma teoria A supera o paradigma de uma teoria B; mais tarde uma teoria C retoma aspectos da teoria B e supera a teoria A.

É desta maneira dialética, sob o ponto de vista histórico, que Gaston Bachelard (1884-1962), matemático e filósofo da ciência, compreendeu a história do conhecimento científico. Este avança em sucessivas retificações provocadas por um pensamento empenhado nas disputas das teorias.  A verdade de uma teoria é a retificação histórica de erros anteriores (REALE, 1990, p. 1014)

O termo dialética, do grego dialectica, significou inicialmente a arte do diálogo e da discussão. Depois de Hegel, assumiu o sentido de encadeamento de pensamentos nos quais o intelecto se arrasta sem poder se deter antes da última etapa (LALANDE, 1993, p. 256). Situação em que duas razões travam um confronto no qual se verifica uma espécie de acordo após sucessivas mudanças de posições induzidas pela posição contrária. Compreendendo melhor este conceito podemos resignificar a famosa frase de Newton: “Se enxerguei mais longe, foi porque me apoiei sobre os ombros de gigantes”.

A ciência moderna: o séc. XVIII
Estudamos que o advento da ciência moderna desencadeou alguns problemas dentre eles a questão do conhecimento verdadeiro. Vimos que duas correntes do pensamento trataram a questão e apresentaram teses opostas à apreensão do conhecimento. A primeira corrente, o racionalismo, no pensamento de Descartes - seu maior sistematizador. A segunda, o empirismo de John Locke com a tese da tábula rasa.
Durante o século XVIII, os pensadores intensificaram ainda mais seus estudos no sentido de construir teorias adequadas a essa nova forma de compreender o mundo, resultando em uma postura radical contra tudo que não apresentasse evidências experimentais.
O poder da nova sociedade estava intimamente ligado à ciência moderna. E, é nesse contexto, que surge o movimento do Iluminismo com três teses inovadoras, a saber: a liberdade, o individualismo e a igualdade. Teses que resultaram no movimento da Revolução Francesa (1789). Esse momento histórico configurou um movimento amplo que envolveu intensamente a filosofia, as artes, a literatura, a ciência e as doutrinas políticas e jurídicas da época. Como representantes dessa corrente de pensamento podemos citar Jean-Jacques Rousseau(1712-1778), Voltaire (1694-1778), Diderot (1713-1784), Immanuel Kant (1724-1804), David Hume (1711-1776), Beccaria (1738-1794) e tantos outros.
Foi um movimento cultural que utilizou os termos iluminismo, ilustração ou esclarecimento para indicar a metáfora da luz da razão em oposição às trevas, à ignorância e superstição. A sua ideia inicial estava calcada na concepção da autonomia do pensar e da capacidade de conhecer o real, ressaltando a idéia segundo a qual todos os homens são dotados de razão, uma luz natural que possibilita o desenvolvimento da filosofia, da ciência e da educação como projeto racional de progresso da humanidade.
O pensamento iluminista foi influenciado pelo movimento científico do séc. XVII, em particular pela revolução científica operada por Galileu Galilei. A descoberta do método experimental que valorizou a técnica contribuiu para o advento da várias ciências e a conseqüente dessacralização da Natureza. Para enriquecer o seu olhar, leia o texto “A ciência na corte”:
O vendaval de novas ideias trazidas pelo Iluminismo produziu, além de reformas políticas, um grande incentivo à investigação no campo das ciências naturais. As novas gerações de monarcas que surgiram ao longo do século XVIII, já formados no contexto do pensamento das Luzes, tinham grande interesse pelos temas ligados à filosofia natural, matemática, astronomia e história natural. Com isso, procuraram incentivar as investigações nesses campos. Tal movimento, conhecido como despotismo esclarecido, possibilitou um grande desenvolvimento da ciência moderna, que exigia cada vez mais instrumentos e artefatos sofisticados e caros.
Como consequência desse movimento começaram a surgir academias de ciências em vários países. Os reis e rainhas passaram a convidar filósofos naturais, naturalistas, astrônomos e matemáticos de renome para trabalhar nessas instituições, pagando-os pelo trabalho. Dessa forma, ao financiarem as investigações, viam seu mecenato eternizado nas dedicatórias que os filósofos colocavam em suas publicações, tradição já em vigor na Itália desde o Renascimento.
Uma das práticas bastante comuns entre os naturalistas da época era formar coleções de insetos, plantas e pedras. Alguns monarcas também procuravam patrocinar tais coleções, chegando a organizar expedições a diferentes regiões do globo com a finalidade de enriquecê-las.  Dessa forma, nasceu na França o Jardim do Rei, uma coletânea de espécimes provenientes de diversas regiões da Terra. Esse jardim transformou-se ao longo do século num dos mais importantes centros de pesquisa botânica do mundo.
A veneração pela filosofia e a história natural não se restringiu ao patrocínio das investigações dos cientistas. A ciência passou a frequentar também os salões da nobreza. Diversos aparatos experimentais que produziam efeitos curiosos foram levados a estes salões para animar festas e reuniões. Máquinas elétricas faziam sucesso nos encontros, produzindo faísca ou eletrizando corpos que se atraíam e repeliam. A ciência passou a frequentar as cortes da Europa, e muitos homens de ciência souberam tirar proveito disso. Sua importância se equiparou à da música e da literatura entre as classes abastadas da sociedade. [BRAGA, Marco. Breve história da ciência moderna. Das luzes ao sonho do doutor Frankenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.  p. 23-24.]

Concluindo...

Acabamos de estudar alguns aspectos da ciência antiga e moderna. Assim, podemos destacar um conceito que nos parece interessante: o conceito de paradigma. Quando mencionamos que o movimento científico grego apresenta uma nova postura diante real, mas ainda está vinculado ao modelo do saber teórico ou contemplativo, estamos querendo dizer que os cientistas da Antiguidade não promoveram uma ruptura ou revolução no modelo grego.

Paradigma, do termo grego paradeigma, significa modelo ou padrão a ser seguido.  O físico Thomas Kuhn (1922-1996) na década de 60 definiu paradigma como aquilo que os membros de uma comunidade partilham (KUHN, 1978, p. 219). O paradigma ou modelo é a matriz ou o pressuposto a partir do qual se pode desenvolver um estudo científico. Uma referência inicial para o trabalho do cientista, ou seja, um conjunto de regras, leis, teorias que interferem na vida de todos nós, em especial em nosso pensamento.

Em alguns casos percebemos que novas teorias científicas promoveram rupturas com os modelos vigentes em sua época e, neste caso, costumamos dizer que houve uma substituição ou superação de paradigmas - uma modificação substancial em nossas referências. Vejamos alguns exemplos: o modelo heliocêntrico; a teoria de Darwin; a teoria de Einstein.

Podemos observar que em determinados momentos pensadores superam sua própria época construindo novas teorias. Na verdade, o ser humano pode modificar seus valores, modificar hábitos.

As rupturas epistemológicas

Gaston Bachelard (1884-1962) nos ensina que a ciência experimenta rupturas epistemológicas, ou seja, o aparecimento de novas teses, métodos, conceitos que negam e substituem ideias anteriores (BACHELARD, 1996, p. 18).

Para este filósofo da ciência, a história da ciência é a história de sucessivas rupturas epistemológicas. A palavra epistemologia, do grego episteme (ciência, conhecimento) e logos (discurso, ordem) é usada para designar a teoria do conhecimento científico (MORA, 1993, p. 216). Um conhecimento que apresenta uma trajetória que precisa ser investigada.

Mas o maior desafio, ou melhor, o maior obstáculo epistemológico está, por exemplo, na opinião (doxa), nos hábitos intelectuais cristalizados, em teorias científicas apresentadas como dogmas, dentre outros. Isto significa dizer que o maior obstáculo epistemológico pode ser desvelado no próprio sujeito do conhecimento que precisa aprender a retificar, diversificar e a precisar o conhecimento, mas para melhor questionar. O fato é que o conhecimento científico não tem fim e acrescenta: “todo conhecimento é resposta a uma pergunta. Se não há pergunta, não pode haver conhecimento científico” (BACHELARD, 1996, p. 18).

Na verdade, o cientista não elabora pergunta alguma se nada sabe acerca da resposta. Se não a soubesse, nada teria a perguntar. Todo cientista ao fazer ciência oferece um ponto de vista, uma interpretação. É nesse sentido que afirmamos que o pensamento não esgota o pensado, pois a realidade é mais rica do que a análise do cientista; a ciência é produto social; e, por fim, a ciência não gera certezas cabais (DEMO, 2007, p. 78-79).

Assim, estudamos que o conhecimento científico resulta da relação dialética entre nosso saber e nosso desconhecimento. Aprendemos também que a ciência preserva o seu caráter hipotético, porque não há certezas absolutas.

Ao estudarmos a importância das hipóteses, compreendemos que o trabalho do cientista é movido por interesses, o que implica dizer que não há a análise pura e desinteressada dos fatos. Toda teoria que inicialmente nos parece oferecer alguma resposta a um problema, suscita novas indagações.

No âmbito do conhecimento científico, encontramos os conceitos de hipótese, teoria e fatos intimamente relacionados. Assim, podemos afirmar que o desenvolvimento do saber científico acontece no horizonte da relação entre fatos e teorias que possibilitam a formulação de novas hipóteses.


Referências:


ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. 3. ed. São Paulo: Moderna, 2003.

BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento científico. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.

DEMO, Pedro. Metodologia científica em ciências sociais. São Paulo: Atlas, 2007.

KUHN, Thomas. Estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1978.

LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

LAKATOS, Eva M; MARCONI, Marina de A. Metodologia científica. São Paulo: Atlas, 2000.

LLOYD, Geoffrey Ernest R. Early Greek Science: Thales to Aristotle. New York: Norton & Co., 1970.

MANCHESTER, William. Fogo sobre a Terra. A mentalidade medieval e o Renascimento. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

MORA, José Ferrater. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 216.

POPPER, Karl. Lógica da pesquisa científica. São Paulo: EDUSP, 1985.

_______. Autobiografia. São Paulo: Cultrix, 1977.

REALE, Giovanni. História da filosofia. São Paulo: Paulus, 1990. V. 1.







Ciências da natureza e ciências sociais: como cada uma compreende o conhecimento


Clara Maria C. Brum de Oliveira

O renascimento inaugurou uma nova era com a substituição gradual da antiga ciência que se baseava em longas argumentações lógicas pela observação dos fatos. E até podemos dizer que o desenvolvimento da astronomia teve grande papel nessa trajetória. Assim, as descobertas no campo da física e da astronomia conduziram à superação gradual do paradigma antigo que estava na base do sistema aristotélico e, por consequência propiciaram a separação entre o saber científico e o saber filosófico.

Após o breve período do renascimento, surgiu o que os pensadores chamam de idade moderna, também conhecida como idade da razão. Sem dúvida, esse momento histórico foi fertilizado por uma nova visão de mundo que influenciou o pensamento científico.

Mas por que usaram o termo moderno para o período que se estende do séc. XVI ao XVIII?

No sentido etimológico, o termo moderno designa o que é recente, a valorização do presente, do que é, possivelmente mitificando o atual, por ser atual, desvalorizando o estado anterior. A palavra foi utilizada por traduzir o sentido de algo novo, típico das épocas de transição de valores: o pensamento novo dos modernos versus as teses dos antigos. Por conseguinte, quando estudamos esse momento histórico estamos tratando de uma época marcada pelo processo de ruptura com os valores defendidos pela tradição medieval.

Assim, podemos considerar grandes pensadores tais como Francis Bacon (1561-1626), Thomas Hobbes (1588-1679), René Descartes (1596-1650), Blaise Pascal (1623-1662), John Locke (1632-1704), Nicolas de Malebranche (1638-1715), Baruch Spinoza (1632-1677), Wilhelm Leibniz (1646-1716), George Berkeley (1685-1753), David Hume (1711-1776), Immanuel Kant (1724-1804) e tantos outros, cujas obras partiram em defesa das mudanças, do progresso nas artes, nas letras e ciências. 

Mas é importante observar que tais pensadores não se denominavam modernos, uma vez que o conceito “moderno” enquanto periodização histórica aparece nos estudos do filósofo alemão, Hegel (1770-1831), quando elaborou uma história da filosofia (MARCONDES, 1997, p. 139).


Esta etapa do pensamento filosófico e científico foi marcadamente um momento de otimismo histórico e de fé na racionalidade e, neste ponto, podemos enumerar algumas ideias que nos ajudam a compreender a atmosfera da época (MARCONDES, 1997):

1. A razão é considerada a dimensão mais importante do homem;
2. O conhecimento liberta o ser humano da ignorância e da superstição;
3. O universo é ordenado e inteligível através da matemática;
4. Somente a ciência nos conduz ao conhecimento verdadeiro;
5. A observação e a experimentação são os meios válidos para acessar a ordem da natureza;
6. O homem é o senhor soberano da natureza. 

Esta valorização da razão nos conduziu à problematização do tipo de racionalidade que se afigurou nesse contexto, ou melhor, a partir desse contexto. O que se observa é que a razão sempre esteve presente nas sociedades antigas e pensadores se esforçaram no sentido de justificar suas crenças e objetivos a partir dela. Todavia um tipo de racionalidade passa a ocupar lugar de destaque: a racionalidade instrumental que significa “a racionalidade dos meios mais eficazes para alcançar o objetivo” (MENESES, 1998, p. 9). Neste aspecto, importa buscar meios racionais e eficazes para fazer o que realmente interessa – alcançar uma suposta sociedade moderna.


Jürgen Habermas (1929 -), na obra Técnica e Ciência como Ideologia, publicada em 1968, observa que foi Max weber quem introduziu o conceito de racionalidade com o objetivo de definir a atividade econômica capitalista. Racionalização, diz Habermas, “significa, em primeiro lugar, a ampliação das esferas sociais, que ficam submetidas aos critérios da decisão racional” (1994, p. 45).

A sociedade se submete a uma racionalização progressiva inerente ao processo de institucionalização do progresso científico e técnico. Progresso que Habermas, ao citar a leitura de Herbert Marcuse sobre o conceito desenvolvido por Weber, interpreta como uma forma determinada de dominação política (HABERMAS, 1994, p. 46).

Por conseguinte, neste breve estudo sobre a história do pensamento científico, podemos afirmar que o conhecimento e a informação não se desvinculam de seu contexto social, mas ao contrário, este se afigura como elemento condicionante (NUNES, 2007, p. 14).

A ciência no séc. XIX:


No séc. XIX a ciência amplia seu lugar com a consolidação de algumas áreas de saber, dentre elas a biologia, a física e a química. Intensificam-se os debates acadêmicos e as pesquisas a partir de uma ótica em que a ciência é percebida como possibilidade de libertação humana (BRAGA; GUERRA; REIS, 2008, p. 13).  Foi um momento marcado por  muitas descobertas e invenções que passaram a integrar a vida cotidiana. Nesse sentido, autores observam que


Esse tempo de prosperidade, felicidade e fé nas conquistas do conhecimento humano – e de suas aplicações ao cotidiano por meio da tecnologia – bem poderia ser chamado de belle-époque da ciência (BRAGA; GUERRA; REIS, 2008, p. 14).

Pode-se, então, dizer que a industrialização foi um fenômeno que marcou sua época. Como todo fenômeno social, resultou de vários fatores, dentre eles a nova organização do trabalho a partir da relação entre ciência e técnica (tecnologia). E neste cenário, estudiosos da ciência iniciaram suas investigações no sentido de uma base teórica para essa nova realidade.

Mas foi no campo do ensino que a Alemanha ofertou uma contribuição importante. O ensino germânico valorizou simultaneamente o pensamento especulativo e o saber técnico, ou seja, teoria e prática. Com a reforma educacional operada por Wilhelm Von Humboldt (1767-1835), na Universidade de Berlim, ensino e pesquisa se fundiram como elementos indissociáveis. Segundo Severino (2002, p. 11 apud MARTINS, 2010):

(...) numa sociedade organizada, espera-se que a educação, como prática institucionalizada, contribua para integração dos homens no tríplice universo das práticas que tecem a sua existência histórica concreta: no universo do trabalho, âmbito da produção material e das relações econômicas; no universo da sociabilidade, âmbito das relações políticas, e no universo da cultura simbólica, âmbito da consciência pessoal, da subjetividade e das relações intencionais.

Humboldt introduziu a pesquisa como função inerente à universidade, concepção corroborada por pensadores tais como Karl Jasper e Hegel, e que configurou uma mudança qualitativa na própria concepção de universidade, impulsionada pelo advento da ciência moderna.

A época de Napoleão Bonaparte, por exemplo, não ficou silente a esse processo, mas também operou uma reforma educacional que resultou na universalização do ensino sob o comando do Estado. Contribuindo, assim, para o surgimento de escolas e liceus em que a “ciência passou a ter importância significativa na formação de crianças e jovens da época” (BRAGA; GUERRA; REIS, 2008, p. 18). E com a ciência, a racionalização do espaço urbano, da vida e suas novas exigências.

Por essa razão, teoria e prática vivenciaram uma relação intensa nesse momento, porque os inventos demandavam soluções teóricas para os problemas tecnológicos. Essa era fase de Nikolaus Otto (1832-91), Gottlieb Daimler (1834-1900), Karl Benz (1844-1929), Werner Von Siemens (1816-92), Louis Pasteur (1822-95), dentre outros. Na literatura, H. G. Wells (1866-1946) e Jules Verne (1828-1905), enfocando o futuro que a ciência poderia trazer à sociedade.

A educação acompanhou esse movimento, porque é um fenômeno humano que encontra sentido na temporalidade, nas mediações entre as pessoas e com os objetos de investigação. Nos dizeres de Cezar Luís Seibt (2008, p. 91)

O ser humano não nasce programado e pronto para exercer as funções culturais, os papéis e habilidades que seu tempo e lugar exigem. Ele nasce dentro de um horizonte não totalmente determinado pelos instintos, no espaço da cultura, portanto, no âmbito da possibilidade. Precisa, por isso, passar por um processo de aquisição de conhecimentos e habilidades que lhe permitam ser aquilo que se é, ou deve ser na sua cultura.


O desenvolvimento técnico


Nessa atmosfera profícua ao pensamento científico, experimentou-se um vertiginoso aumento populacional que provocou excedente de mão-de-obra. Este fenômeno foi importante para a consolidação do novo modelo industrial. Braga, Guerra e Reis (2008, p. 21, grifo nosso) sintetizam esta fase quando mencionam que:


O desenvolvimento técnico cristalizou um enorme sentimento de esperança ao longo do século. As máquinas que invadiam o cotidiano europeu apresentavam-se agora como a chave para a construção de um futuro próspero, fazendo antever um tempo no qual os principais problemas que afligiam a humanidade poderiam ser resolvidos pela ciência aplicada. O ideal de progresso cultivado pelos intelectuais no século anterior ganhou as ruas. O homem havia se libertado das limitações impostas pela natureza e pelas visões religiosas de outrora. A razão tornava-o senhor de seu próprio destino. Parecia não haver limites para a ciência e a tecnologia. Prometeu, enfim, fora desacorrentado.

A despeito desse grande entusiasmo, o processo de industrialização inseriu máquinas em tarefas executadas anteriormente por homens. Atrelada a esta situação, trabalhadores experimentavam condições subumanas de trabalho e, como muitos estudiosos observam, a concepção “universo-máquina” transformava homens em engrenagens desse novo sistema.

Um bom exemplo para esta situação foi a extração de carvão que se tornou rentável à época, marcando a contradição entre um ideal de progresso e realidade. Neste aspecto, cabe pontuar que os ideais de uma sociedade igualitária cederam lugar aos movimentos socialistas e a ciência encontrava-se no âmago desta contradição (BRAGA; GUERRA; REIS, 2008, p. 23).


A ciência crescia vertiginosamente e, ao mesmo tempo, teóricos como Karl Marx (1818-1883) apontavam para as contradições e para a necessidade de uma nova sociedade. Sem dúvida, o séc. XIX foi marcado por um clima otimista em relação à ciência como lugar da verdade, sob o domínio de uma racionalidade científica.  Todavia, tal euforia não afastou a inquietude de muitos pensadores preocupados com as restrições e modificações impostas à sociedade. E reflexões sobre a ciência* aparecem já no séc. XIX, incorporando o que mais tarde foi denominado de epistemologia.

[*Bernard Bo estudou as ciências formais, lógicas e matemáticas em 1837. William Whewell estudou as ciências da natureza em 1840. Cf. MORAES, Maria Célia M. Notas introdutórias à epistemologia e à história das ciências. In: HÜHNE, L. M. Filosofia e ciência. Rio de Janeiro: Uapê; SEAF, 2008. p. 44.

Para enriquecer o seu olhar, assista a um fragmento do filme Germinal que trata do contexto histórico da Revolução Industrial:

[Germinal (1993) - filme baseado no romance de Émile Zola, do séc. XIX, dirigido por Claude Berri. A história refere-se ao cotidiano de exploração sofrido pelos trabalhadores de várias minas de carvão na região de Montsou, França.]


E, em seguida, assista ao vídeo:

Marx e a Educação com Antônio Joaquim Severino: Esclarecimento da Sociedade
  
A tradição positivista* representou o pensamento que dominou a cultura européia a partir de 1840. E sob o aspecto político, esta consolidou uma verdadeira revolução na vida social, cujo entusiasmo se cristalizou em torno da concepção de progresso humano e social irrefreável. Todavia, desequilíbrios sociais, lutas por novos mercados, a miséria do proletariado e as diferentes formas de exploração de crianças e mulheres foram observados pelo marxismo nesse horizonte positivista que os considerava transitório e elimináveis.

[*Os representantes do positivismo:  Auguste Comte (1798-1857), na França; John Stuart Mill ( 1806-1873) e Herbert Spencer (1820-1903), na Inglaterra; Jakob Moleschott (1822-1893) e Ernst Heckel (1834-1919), na Alemanha; Roberto Ardigò (1828-1920), na Itália. Cf. REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: do romantismo até nossos dias. São Paulo: Paulus, 1991. p. 296.)]


O positivismo

Com Auguste Comte* (1798-1857) foi difundida uma nova escola de pensamento que se baseou numa educação científica básica, separada de aspectos metafísicos: o positivismo. A tradição positivista buscou os caminhos para um estudo da ciência adequado a esta fase que marcava uma suposta superação de toda e qualquer especulação filosófica, sinalizando assim seus limites no interior de um discurso com método e conceitos próprios.

Estabeleceu-se assim um critério de cientificidade, com a pretensão de ser a base para todo conhecimento verdadeiro. Neste horizonte, a ciência foi concebida “como uma atividade autônoma que progride de forma linear e acumulativa, por si mesma como um continuum de racionalidade” (MORAES, 2008, p. 51, grifo da autora).

[*Este autor elaborou duas obras marcantes: Curso de filosofia positiva (1830) em que apresentou os fundamentos de uma filosofia positiva e a obra Sistema da política positiva (1851), em que apresenta uma análise da sociedade e a proposta de uma religião ateísta da humanidade (BRAGA; GUERRA; REIS, 2008, p. 26).]

De um modo geral, o positivismo valorizou a ciência como o lugar do conhecimento e, nesse sentido, considerou as ciências naturais como o único método possível, inclusive para o estudo da sociedade. A Sociologia passa a ser vista como uma ciência de fatos naturais, ou seja, a ciência das relações humanas e sociais.

Conforme assevera Giovani Reale e Dario Antiseri (1991, p. 297) “em linhas gerais, o positivismo (...) é caracterizado pela confiança acrítica e, amiúde, leviana e superficial, na estabilidade e no crescimento sem obstáculos da ciência”. E mais adiante acrescentam que “através da observação, é possível estabelecer as leis dos fenômenos sociais, como a física pode estabelecer as leis que guiam os fenômenos físicos” (p. 301).

Antes de prosseguir, assista ao vídeo sobre o positivismo e conheça um pouco mais sobre essa corrente de pensamento:


Segundo Maria Célia M. Moraes (2008), baseando-se no pensamento de Dominique Lecourt*, a tradição positivista apresentou um discurso contraditório, porque buscou fundamentos em pressupostos que podem ser considerados metafísicos e ideológicos.   Vejamos algumas críticas:

[*Dominique Lecourt (1944 - ) Filósofo francês estudioso de Filosofia da Ciência, Ética, Bioética e Política.]

A primeira incongruência estaria no tratamento concedido à ciência como uma entidade autônoma, capaz de configurar um único objeto (a Ciência). Na verdade, não devemos reduzir as práticas científicas num todo homogêneo (p. 49). Nesse sentido assevera,

A ideia positivista de uma “ciência da ciência” nada mais é, dessa forma, do que uma pretensão metafísica que pretende anular essas diferenças para encontrar uma suposta essência comum, essa sim, o objeto adequado para essa ciência. Estamos diante de uma metafísica cientificista tão pretensiosa e arrogante como a que a precedeu na história (p. 49-50).

A segunda inconsistência está no fato de pretender estabelecer limites e critérios rigorosos de cientificidade, eliminando abordagens especulativas e metafísicas do processo de construção do saber científico. Sendo certo que buscaram fundamento num modelo de ciência típico das ciências da natureza, em particular a física. Ao impor esse modelo às demais ciências, promovem um cerceamento, sob o império de um suposto critério de cientificidade. E, neste caso, como dar conta das ciências humanas que por sua natureza “são formas de saber irredutíveis a esse modelo”. Ressalta a autora que

No que diz respeito às ciências humanas, trata-se de uma verdadeira armadilha, uma vez que sua existência e positividade, desse ponto de vista, passam a depender de sua cientificidade, quando de fato, são formas de saber irredutíveis a esse modelo. Não por incapacidade ou incompetência dos que se dedicam à sua construção, mas porque são saberes constituídos nessa irredutibilidade, porque se encontram colocadas em uma configuração epistemológica extremamente complexa, em permanente relação com as demais formas de saber (p. 50).

A terceira crítica que o autor apresenta se refere à pretensão do discurso científico de cunho positivista em apresentar uma suposta autonomia, ou seja, não deve contas a ninguém e constrói um espaço próprio para o seu fundamento epistemológico, um saber que avança num sentido linear (p. 51).

A quarta crítica observa que a tradição positivista ignorou o aspecto institucional da ciência com a proposta de uma ciência universal, uma comunidade científica universal. Sem considerar a existência de grupos fechados, estilos de pesquisa diferentes, obstáculos na transmissão dos resultados, bem como o fato de existir critérios de ordem econômica e política – as relações com o poder. Portanto, ignorar a dimensão institucional da ciência significa não enxergar o contexto de sua justificação e aplicação (p. 52).

A quinta observação focaliza o projeto do positivismo que percebe a ciência como a possibilidade de organizar o trabalho científico. E mais. A organizar a sociedade a partir da ótica da ciência. Isto significa dizer que a “organização social, a liberdade política, [questões] de tecnologia, de ciência de todas essas formas de racionalidade moderna” (p. 53) deveriam ser vista e planejadas pela ciência.

Além de assegurar a ciência como método único e mais importante, a tradição positivista exaltou o conhecimento científico como a solução para todos os problemas humanos e sociais, considerando os fatos empíricos como a base do conhecimento verdadeiro, numa concepção da cultura concebida como construção humana.

A ciência no século XX


Como observa Eric Hobsbawm* é mais difícil falar de uma época que configura o nosso próprio tempo, porque parte de nossas vidas experimentou com maior ou menor grau de consciência esse momento histórico.

[*“Não é possível escrever a história do século XX como a de qualquer outra época, quando mais não fosse porque ninguém pode escrever sobre seu próprio tempo de vida como pode (e deve fazer em relação a uma época conhecida apenas de fora, em segunda ou terceira mão, por intermédio de fontes da época ou obras de historiadores posteriores” - HOBESBAWM, E. Era do extremos: o breve século XX – 1914-1991. São Paulo: Cia das Letras, 1995. p. 7.)

Em linhas gerais, o séc. XX foi marcado por guerras, depressão econômica e por um grande avanço científico e tecnológico com invenções tais como o automóvel, a lâmpada, o telefone, o computador e posteriormente a internet

Na indústria, a linha de montagem e produção em massa e a invenção de inúmeros eletrodomésticos. No âmbito da cultura, arte moderna (expressionismo, realismo e cubismo), o desenvolvimento das tecnologias de mídia de massa: filmes, rádio e televisão.

Na Física, a teoria da relatividade, a mecânica quântica. Na Medicina, o antibiótico, o contraceptivo e o advento da biologia molecular e da engenharia genética. Isso se observarmos apenas a história da ciência a partir de seus produtos, sem pretender mencionar aqui todas as inovações que provocaram novas maneiras de ser e agir no mundo.

Apesar desse vertiginoso avanço tecnológico e científico, este século experimentou um olhar crítico em direção às concepções positivistas do século anterior, fragilizando a percepção da ciência como único método possível. 


Críticas contundentes foram proferidas por pensadores tais como Wilhelm Dilthey (1833-1911) e Edmund Husserl* (1859-1938), sobre a neutralidade científica em relação aos interesses econômicos; sobre o intenso desenvolvimento de tecnologias de guerra com grande poder destrutivo; sobre a crença na dominação da natureza, tida como inesgotável e os consequentes desequilíbrios ecológicos; sobre a crença num suposto avanço contínuo da humanidade enfraquecida pela miséria, fome e pandemias.

[* Dilthey – representante do historicismo alemão, promoveu uma análise crítica da razão histórica no sentido de fundamentar a validade das ciências do espírito, rompendo com o pensamento positivista que reduziu o mundo histórico à natureza. Cf. REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: do romantismo até nossos dias. São Paulo: Paulus, 1991.]

[* Husserl – Fundador do da Fenomenologia, corrente de pensamento que teve grande influência no séc. XX. Atento ao desenvolvimento das ciências positivas e também das ciências histórico-sociais, incentivou debates sobre as concepções filosóficas do positivismo.  Cf. REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: do romantismo até nossos dias. São Paulo: Paulus, 1991.]


Uma das críticas mais interessantes foi elaborada por Husserl que observou em seus estudos uma profunda crise nas ciências européias. Uma crise que não repousava sobre a cientificidade* em si, mas sobre o significado das ciências para a humanidade, ou seja, a pretensão segundo a qual a ciência “é a única verdade válida e a ideia a ela ligada de que o mundo descrito pelas ciências seria a verdadeira realidade” (REALE; ANTISERI, 1991, p. 565). Giovani Reale e Dario Antiseri (1991, p. 565,) apontam tal crítica quando citam Edmund Husserl:

Husserl traça a história dessa pretensão e dessa ideia, a começar por Galileu e Descartes. Mas, escreve ele, “na miséria da nossa vida, (...) essa ciência não tem nada a nos dizer. Em princípio, ela exclui aqueles problemas que são os mais candentes para o homem, o qual, em nossos tempos atormentados, sente-se à mercê do destino: os problemas do sentido e do não-sentido da existência humana em seu conjunto.”
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Pergunta-se Husserl, “o que tem a dizer essa ciência sobre a razão e sobre a não-razão, o que tem ela a dizer sobre nós, homens, enquanto sujeitos dessa liberdade? Obviamente, a mera ciência de fatos não tem nada a nos dizer a esse respeito: ela, precisamente, abstrai de qualquer sujeito”.


[*Segundo Danilo Marcondes e Hilton Japiassú: “Este termo evoca os critérios que nos permitem definir o que constitui um conhecimento científico de fato e distingui-lo claramente das outras formas de saber não-científicas. Dois são os critérios mais correntes: o recurso à dedução racional e o recurso à verificação experimental. Só há conhecimento científico a partir do momento em que podemos repetir determinado fenômeno ou prever com certeza o aparecimento desse fenômeno, sob determinadas condições”. Cf. JAPIASSÚ, H.; MARCONDES, D. Dicionário básico de filosofia. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.]

A crítica de Dilthey também direcionada ao positivismo focaliza a redução do homem à natureza no momento em que a tradição positivista aplica à dimensão histórica a relação causal-determinista típica das ciências naturais. E assim pretendeu realizar uma análise da razão histórica. Em seu pensamento as ciências da natureza* e as ciências do espírito* se diferenciavam quanto ao seu objeto de investigação. Nas ciências da natureza temos como objeto fenômenos externos ao homem e nas ciências do espírito, o mundo das relações entre os indivíduos, sendo o homem o seu próprio objeto.

[*Para Dilthey, as ciências da natureza são aquelas que viam conhecer causalmente os objetos externos; as ciências do espírito, as que visam compreender o objeto, que é o homem. Sobre isto cf. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1982. p. 130.]

Tanto o pensamento de Husserl, quanto o Dilthey convergem para a problemática do fundamento das ciências do espírito, ou seja, como estas podem ser delimitadas pelas ciências naturais se seus objetos diferem, impossibilitando um saber histórico objetivo?
  
Hans-Georg Gadamer (1900-2002), considerado um dos maiores pensadores da hermenêutica filosófica, observou, no horizonte dessa crítica à tradição positivista, que a consciência histórica caracteriza o homem contemporâneo, porque ele tem plena consciência da historicidade do presente e da relatividade do saber. Entendeu por esse senso histórico, a possibilidade de “superar o modo consequente, a ingenuidade natural que nos leva a julgar o passado pelas medidas supostamente evidentes de nossa vida atual, adotando a perspectiva de nossas instituições, de nossos valores e verdades adquiridas” (2003, p. 18).

Ter uma consciência histórica para este autor significa demonstrar uma posição reflexiva com relação a tudo o que é ensinado pela tradição, ou seja, interpretar (2003, p. 19). Interpretar exige um olhar para além do que é imediato, porque a interpretação é influenciada por ideologias. E neste aspecto acrescenta que as ciências humanas* nos propõem um problema de cunho filosófico: investigar os fundamentos para uma independência epistemológica em face das ciências da natureza, porque reconhecemos “a impossibilidade de submetê-las ao ideal de conhecimento próprio das ciências da natureza” (2003, p. 20). E mais adiante observa “a necessidade é compreender o fenômeno histórico na sua singularidade” (2003, p. 23).

[*C. Humanas –  Segundo Régis Jolivet as ciências humanas eram entendidas à época como “aquelas que, elaboradas por via de métodos positivos, dizem respeito às diferentes atividades, individuais ou coletivas, do homem enquanto ser inteligente e livre. Estas ciências englobam a psicologia, a sociologia, o direito, a etnologia, a história etc.” JOLIVET, R. Vocabulário de filosofia. Rio de Janeiro: Agir, 1975. p. 42.]

De acordo com o exposto até aqui, podemos afirmar que a história do pensamento humano, em particular a história da ciência e do conhecimento é marcada por momentos de passagens que denotam que há uma dinâmica da cultura desvelando o ser humano na sua transcendência, ou seja, um ser que vive o presente, compreende seu passado pelas aprendizagens que assimilou, projeta o seu futuro (SEIBT, 2008). Nenhuma análise pode abordar a produção material e cultural dos homens, sem considerar uma história das ideias que observa o problema do conhecimento (MORAES, 2008, p. 54).


Referências:

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1982.

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. 3. ed. São Paulo: Moderna, 2003.

BRAGA, M.; GUERRA, A.; REIS, J.C. Breve história da ciência moderna, volume 4: a belle-époque da ciência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

HABERMAS, J. Técnica e ciência como ideologia. Lisboa: Edições 70, 1994.

HOBESBAWM, E. Era do extremos: o breve século XX – 1914-1991. São Paulo: Cia das Letras, 1995.

JAPIASSÚ, H.; MARCONDES, D. Dicionário básico de filosofia. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

JOLIVET, R. Vocabulário de filosofia. Rio de Janeiro: Agir, 1975.

KANT, Immanuel. Sobre a expressão corrente: isto pode ser correcto na teoria, mas nada vale na prática. In: A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edições 70, 1990.

LAKATOS, Eva M; MARCONI, Marina de A. Metodologia científica. São Paulo: Atlas, 2000.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

MORAES, Maria Célia M. Notas introdutórias à epistemologia e à história das ciências. In:

HÜHNE, L. M. Filosofia e ciência. Rio de Janeiro: Uapê; SEAF, 2008.

REALE, Giovanni. História da filosofia. São Paulo: Paulus, 1990. V. 1.