terça-feira, 21 de maio de 2013

Ciências da natureza e ciências sociais: como cada uma compreende o conhecimento


Clara Maria C. Brum de Oliveira

O renascimento inaugurou uma nova era com a substituição gradual da antiga ciência que se baseava em longas argumentações lógicas pela observação dos fatos. E até podemos dizer que o desenvolvimento da astronomia teve grande papel nessa trajetória. Assim, as descobertas no campo da física e da astronomia conduziram à superação gradual do paradigma antigo que estava na base do sistema aristotélico e, por consequência propiciaram a separação entre o saber científico e o saber filosófico.

Após o breve período do renascimento, surgiu o que os pensadores chamam de idade moderna, também conhecida como idade da razão. Sem dúvida, esse momento histórico foi fertilizado por uma nova visão de mundo que influenciou o pensamento científico.

Mas por que usaram o termo moderno para o período que se estende do séc. XVI ao XVIII?

No sentido etimológico, o termo moderno designa o que é recente, a valorização do presente, do que é, possivelmente mitificando o atual, por ser atual, desvalorizando o estado anterior. A palavra foi utilizada por traduzir o sentido de algo novo, típico das épocas de transição de valores: o pensamento novo dos modernos versus as teses dos antigos. Por conseguinte, quando estudamos esse momento histórico estamos tratando de uma época marcada pelo processo de ruptura com os valores defendidos pela tradição medieval.

Assim, podemos considerar grandes pensadores tais como Francis Bacon (1561-1626), Thomas Hobbes (1588-1679), René Descartes (1596-1650), Blaise Pascal (1623-1662), John Locke (1632-1704), Nicolas de Malebranche (1638-1715), Baruch Spinoza (1632-1677), Wilhelm Leibniz (1646-1716), George Berkeley (1685-1753), David Hume (1711-1776), Immanuel Kant (1724-1804) e tantos outros, cujas obras partiram em defesa das mudanças, do progresso nas artes, nas letras e ciências. 

Mas é importante observar que tais pensadores não se denominavam modernos, uma vez que o conceito “moderno” enquanto periodização histórica aparece nos estudos do filósofo alemão, Hegel (1770-1831), quando elaborou uma história da filosofia (MARCONDES, 1997, p. 139).


Esta etapa do pensamento filosófico e científico foi marcadamente um momento de otimismo histórico e de fé na racionalidade e, neste ponto, podemos enumerar algumas ideias que nos ajudam a compreender a atmosfera da época (MARCONDES, 1997):

1. A razão é considerada a dimensão mais importante do homem;
2. O conhecimento liberta o ser humano da ignorância e da superstição;
3. O universo é ordenado e inteligível através da matemática;
4. Somente a ciência nos conduz ao conhecimento verdadeiro;
5. A observação e a experimentação são os meios válidos para acessar a ordem da natureza;
6. O homem é o senhor soberano da natureza. 

Esta valorização da razão nos conduziu à problematização do tipo de racionalidade que se afigurou nesse contexto, ou melhor, a partir desse contexto. O que se observa é que a razão sempre esteve presente nas sociedades antigas e pensadores se esforçaram no sentido de justificar suas crenças e objetivos a partir dela. Todavia um tipo de racionalidade passa a ocupar lugar de destaque: a racionalidade instrumental que significa “a racionalidade dos meios mais eficazes para alcançar o objetivo” (MENESES, 1998, p. 9). Neste aspecto, importa buscar meios racionais e eficazes para fazer o que realmente interessa – alcançar uma suposta sociedade moderna.


Jürgen Habermas (1929 -), na obra Técnica e Ciência como Ideologia, publicada em 1968, observa que foi Max weber quem introduziu o conceito de racionalidade com o objetivo de definir a atividade econômica capitalista. Racionalização, diz Habermas, “significa, em primeiro lugar, a ampliação das esferas sociais, que ficam submetidas aos critérios da decisão racional” (1994, p. 45).

A sociedade se submete a uma racionalização progressiva inerente ao processo de institucionalização do progresso científico e técnico. Progresso que Habermas, ao citar a leitura de Herbert Marcuse sobre o conceito desenvolvido por Weber, interpreta como uma forma determinada de dominação política (HABERMAS, 1994, p. 46).

Por conseguinte, neste breve estudo sobre a história do pensamento científico, podemos afirmar que o conhecimento e a informação não se desvinculam de seu contexto social, mas ao contrário, este se afigura como elemento condicionante (NUNES, 2007, p. 14).

A ciência no séc. XIX:


No séc. XIX a ciência amplia seu lugar com a consolidação de algumas áreas de saber, dentre elas a biologia, a física e a química. Intensificam-se os debates acadêmicos e as pesquisas a partir de uma ótica em que a ciência é percebida como possibilidade de libertação humana (BRAGA; GUERRA; REIS, 2008, p. 13).  Foi um momento marcado por  muitas descobertas e invenções que passaram a integrar a vida cotidiana. Nesse sentido, autores observam que


Esse tempo de prosperidade, felicidade e fé nas conquistas do conhecimento humano – e de suas aplicações ao cotidiano por meio da tecnologia – bem poderia ser chamado de belle-époque da ciência (BRAGA; GUERRA; REIS, 2008, p. 14).

Pode-se, então, dizer que a industrialização foi um fenômeno que marcou sua época. Como todo fenômeno social, resultou de vários fatores, dentre eles a nova organização do trabalho a partir da relação entre ciência e técnica (tecnologia). E neste cenário, estudiosos da ciência iniciaram suas investigações no sentido de uma base teórica para essa nova realidade.

Mas foi no campo do ensino que a Alemanha ofertou uma contribuição importante. O ensino germânico valorizou simultaneamente o pensamento especulativo e o saber técnico, ou seja, teoria e prática. Com a reforma educacional operada por Wilhelm Von Humboldt (1767-1835), na Universidade de Berlim, ensino e pesquisa se fundiram como elementos indissociáveis. Segundo Severino (2002, p. 11 apud MARTINS, 2010):

(...) numa sociedade organizada, espera-se que a educação, como prática institucionalizada, contribua para integração dos homens no tríplice universo das práticas que tecem a sua existência histórica concreta: no universo do trabalho, âmbito da produção material e das relações econômicas; no universo da sociabilidade, âmbito das relações políticas, e no universo da cultura simbólica, âmbito da consciência pessoal, da subjetividade e das relações intencionais.

Humboldt introduziu a pesquisa como função inerente à universidade, concepção corroborada por pensadores tais como Karl Jasper e Hegel, e que configurou uma mudança qualitativa na própria concepção de universidade, impulsionada pelo advento da ciência moderna.

A época de Napoleão Bonaparte, por exemplo, não ficou silente a esse processo, mas também operou uma reforma educacional que resultou na universalização do ensino sob o comando do Estado. Contribuindo, assim, para o surgimento de escolas e liceus em que a “ciência passou a ter importância significativa na formação de crianças e jovens da época” (BRAGA; GUERRA; REIS, 2008, p. 18). E com a ciência, a racionalização do espaço urbano, da vida e suas novas exigências.

Por essa razão, teoria e prática vivenciaram uma relação intensa nesse momento, porque os inventos demandavam soluções teóricas para os problemas tecnológicos. Essa era fase de Nikolaus Otto (1832-91), Gottlieb Daimler (1834-1900), Karl Benz (1844-1929), Werner Von Siemens (1816-92), Louis Pasteur (1822-95), dentre outros. Na literatura, H. G. Wells (1866-1946) e Jules Verne (1828-1905), enfocando o futuro que a ciência poderia trazer à sociedade.

A educação acompanhou esse movimento, porque é um fenômeno humano que encontra sentido na temporalidade, nas mediações entre as pessoas e com os objetos de investigação. Nos dizeres de Cezar Luís Seibt (2008, p. 91)

O ser humano não nasce programado e pronto para exercer as funções culturais, os papéis e habilidades que seu tempo e lugar exigem. Ele nasce dentro de um horizonte não totalmente determinado pelos instintos, no espaço da cultura, portanto, no âmbito da possibilidade. Precisa, por isso, passar por um processo de aquisição de conhecimentos e habilidades que lhe permitam ser aquilo que se é, ou deve ser na sua cultura.


O desenvolvimento técnico


Nessa atmosfera profícua ao pensamento científico, experimentou-se um vertiginoso aumento populacional que provocou excedente de mão-de-obra. Este fenômeno foi importante para a consolidação do novo modelo industrial. Braga, Guerra e Reis (2008, p. 21, grifo nosso) sintetizam esta fase quando mencionam que:


O desenvolvimento técnico cristalizou um enorme sentimento de esperança ao longo do século. As máquinas que invadiam o cotidiano europeu apresentavam-se agora como a chave para a construção de um futuro próspero, fazendo antever um tempo no qual os principais problemas que afligiam a humanidade poderiam ser resolvidos pela ciência aplicada. O ideal de progresso cultivado pelos intelectuais no século anterior ganhou as ruas. O homem havia se libertado das limitações impostas pela natureza e pelas visões religiosas de outrora. A razão tornava-o senhor de seu próprio destino. Parecia não haver limites para a ciência e a tecnologia. Prometeu, enfim, fora desacorrentado.

A despeito desse grande entusiasmo, o processo de industrialização inseriu máquinas em tarefas executadas anteriormente por homens. Atrelada a esta situação, trabalhadores experimentavam condições subumanas de trabalho e, como muitos estudiosos observam, a concepção “universo-máquina” transformava homens em engrenagens desse novo sistema.

Um bom exemplo para esta situação foi a extração de carvão que se tornou rentável à época, marcando a contradição entre um ideal de progresso e realidade. Neste aspecto, cabe pontuar que os ideais de uma sociedade igualitária cederam lugar aos movimentos socialistas e a ciência encontrava-se no âmago desta contradição (BRAGA; GUERRA; REIS, 2008, p. 23).


A ciência crescia vertiginosamente e, ao mesmo tempo, teóricos como Karl Marx (1818-1883) apontavam para as contradições e para a necessidade de uma nova sociedade. Sem dúvida, o séc. XIX foi marcado por um clima otimista em relação à ciência como lugar da verdade, sob o domínio de uma racionalidade científica.  Todavia, tal euforia não afastou a inquietude de muitos pensadores preocupados com as restrições e modificações impostas à sociedade. E reflexões sobre a ciência* aparecem já no séc. XIX, incorporando o que mais tarde foi denominado de epistemologia.

[*Bernard Bo estudou as ciências formais, lógicas e matemáticas em 1837. William Whewell estudou as ciências da natureza em 1840. Cf. MORAES, Maria Célia M. Notas introdutórias à epistemologia e à história das ciências. In: HÜHNE, L. M. Filosofia e ciência. Rio de Janeiro: Uapê; SEAF, 2008. p. 44.

Para enriquecer o seu olhar, assista a um fragmento do filme Germinal que trata do contexto histórico da Revolução Industrial:

[Germinal (1993) - filme baseado no romance de Émile Zola, do séc. XIX, dirigido por Claude Berri. A história refere-se ao cotidiano de exploração sofrido pelos trabalhadores de várias minas de carvão na região de Montsou, França.]


E, em seguida, assista ao vídeo:

Marx e a Educação com Antônio Joaquim Severino: Esclarecimento da Sociedade
  
A tradição positivista* representou o pensamento que dominou a cultura européia a partir de 1840. E sob o aspecto político, esta consolidou uma verdadeira revolução na vida social, cujo entusiasmo se cristalizou em torno da concepção de progresso humano e social irrefreável. Todavia, desequilíbrios sociais, lutas por novos mercados, a miséria do proletariado e as diferentes formas de exploração de crianças e mulheres foram observados pelo marxismo nesse horizonte positivista que os considerava transitório e elimináveis.

[*Os representantes do positivismo:  Auguste Comte (1798-1857), na França; John Stuart Mill ( 1806-1873) e Herbert Spencer (1820-1903), na Inglaterra; Jakob Moleschott (1822-1893) e Ernst Heckel (1834-1919), na Alemanha; Roberto Ardigò (1828-1920), na Itália. Cf. REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: do romantismo até nossos dias. São Paulo: Paulus, 1991. p. 296.)]


O positivismo

Com Auguste Comte* (1798-1857) foi difundida uma nova escola de pensamento que se baseou numa educação científica básica, separada de aspectos metafísicos: o positivismo. A tradição positivista buscou os caminhos para um estudo da ciência adequado a esta fase que marcava uma suposta superação de toda e qualquer especulação filosófica, sinalizando assim seus limites no interior de um discurso com método e conceitos próprios.

Estabeleceu-se assim um critério de cientificidade, com a pretensão de ser a base para todo conhecimento verdadeiro. Neste horizonte, a ciência foi concebida “como uma atividade autônoma que progride de forma linear e acumulativa, por si mesma como um continuum de racionalidade” (MORAES, 2008, p. 51, grifo da autora).

[*Este autor elaborou duas obras marcantes: Curso de filosofia positiva (1830) em que apresentou os fundamentos de uma filosofia positiva e a obra Sistema da política positiva (1851), em que apresenta uma análise da sociedade e a proposta de uma religião ateísta da humanidade (BRAGA; GUERRA; REIS, 2008, p. 26).]

De um modo geral, o positivismo valorizou a ciência como o lugar do conhecimento e, nesse sentido, considerou as ciências naturais como o único método possível, inclusive para o estudo da sociedade. A Sociologia passa a ser vista como uma ciência de fatos naturais, ou seja, a ciência das relações humanas e sociais.

Conforme assevera Giovani Reale e Dario Antiseri (1991, p. 297) “em linhas gerais, o positivismo (...) é caracterizado pela confiança acrítica e, amiúde, leviana e superficial, na estabilidade e no crescimento sem obstáculos da ciência”. E mais adiante acrescentam que “através da observação, é possível estabelecer as leis dos fenômenos sociais, como a física pode estabelecer as leis que guiam os fenômenos físicos” (p. 301).

Antes de prosseguir, assista ao vídeo sobre o positivismo e conheça um pouco mais sobre essa corrente de pensamento:


Segundo Maria Célia M. Moraes (2008), baseando-se no pensamento de Dominique Lecourt*, a tradição positivista apresentou um discurso contraditório, porque buscou fundamentos em pressupostos que podem ser considerados metafísicos e ideológicos.   Vejamos algumas críticas:

[*Dominique Lecourt (1944 - ) Filósofo francês estudioso de Filosofia da Ciência, Ética, Bioética e Política.]

A primeira incongruência estaria no tratamento concedido à ciência como uma entidade autônoma, capaz de configurar um único objeto (a Ciência). Na verdade, não devemos reduzir as práticas científicas num todo homogêneo (p. 49). Nesse sentido assevera,

A ideia positivista de uma “ciência da ciência” nada mais é, dessa forma, do que uma pretensão metafísica que pretende anular essas diferenças para encontrar uma suposta essência comum, essa sim, o objeto adequado para essa ciência. Estamos diante de uma metafísica cientificista tão pretensiosa e arrogante como a que a precedeu na história (p. 49-50).

A segunda inconsistência está no fato de pretender estabelecer limites e critérios rigorosos de cientificidade, eliminando abordagens especulativas e metafísicas do processo de construção do saber científico. Sendo certo que buscaram fundamento num modelo de ciência típico das ciências da natureza, em particular a física. Ao impor esse modelo às demais ciências, promovem um cerceamento, sob o império de um suposto critério de cientificidade. E, neste caso, como dar conta das ciências humanas que por sua natureza “são formas de saber irredutíveis a esse modelo”. Ressalta a autora que

No que diz respeito às ciências humanas, trata-se de uma verdadeira armadilha, uma vez que sua existência e positividade, desse ponto de vista, passam a depender de sua cientificidade, quando de fato, são formas de saber irredutíveis a esse modelo. Não por incapacidade ou incompetência dos que se dedicam à sua construção, mas porque são saberes constituídos nessa irredutibilidade, porque se encontram colocadas em uma configuração epistemológica extremamente complexa, em permanente relação com as demais formas de saber (p. 50).

A terceira crítica que o autor apresenta se refere à pretensão do discurso científico de cunho positivista em apresentar uma suposta autonomia, ou seja, não deve contas a ninguém e constrói um espaço próprio para o seu fundamento epistemológico, um saber que avança num sentido linear (p. 51).

A quarta crítica observa que a tradição positivista ignorou o aspecto institucional da ciência com a proposta de uma ciência universal, uma comunidade científica universal. Sem considerar a existência de grupos fechados, estilos de pesquisa diferentes, obstáculos na transmissão dos resultados, bem como o fato de existir critérios de ordem econômica e política – as relações com o poder. Portanto, ignorar a dimensão institucional da ciência significa não enxergar o contexto de sua justificação e aplicação (p. 52).

A quinta observação focaliza o projeto do positivismo que percebe a ciência como a possibilidade de organizar o trabalho científico. E mais. A organizar a sociedade a partir da ótica da ciência. Isto significa dizer que a “organização social, a liberdade política, [questões] de tecnologia, de ciência de todas essas formas de racionalidade moderna” (p. 53) deveriam ser vista e planejadas pela ciência.

Além de assegurar a ciência como método único e mais importante, a tradição positivista exaltou o conhecimento científico como a solução para todos os problemas humanos e sociais, considerando os fatos empíricos como a base do conhecimento verdadeiro, numa concepção da cultura concebida como construção humana.

A ciência no século XX


Como observa Eric Hobsbawm* é mais difícil falar de uma época que configura o nosso próprio tempo, porque parte de nossas vidas experimentou com maior ou menor grau de consciência esse momento histórico.

[*“Não é possível escrever a história do século XX como a de qualquer outra época, quando mais não fosse porque ninguém pode escrever sobre seu próprio tempo de vida como pode (e deve fazer em relação a uma época conhecida apenas de fora, em segunda ou terceira mão, por intermédio de fontes da época ou obras de historiadores posteriores” - HOBESBAWM, E. Era do extremos: o breve século XX – 1914-1991. São Paulo: Cia das Letras, 1995. p. 7.)

Em linhas gerais, o séc. XX foi marcado por guerras, depressão econômica e por um grande avanço científico e tecnológico com invenções tais como o automóvel, a lâmpada, o telefone, o computador e posteriormente a internet

Na indústria, a linha de montagem e produção em massa e a invenção de inúmeros eletrodomésticos. No âmbito da cultura, arte moderna (expressionismo, realismo e cubismo), o desenvolvimento das tecnologias de mídia de massa: filmes, rádio e televisão.

Na Física, a teoria da relatividade, a mecânica quântica. Na Medicina, o antibiótico, o contraceptivo e o advento da biologia molecular e da engenharia genética. Isso se observarmos apenas a história da ciência a partir de seus produtos, sem pretender mencionar aqui todas as inovações que provocaram novas maneiras de ser e agir no mundo.

Apesar desse vertiginoso avanço tecnológico e científico, este século experimentou um olhar crítico em direção às concepções positivistas do século anterior, fragilizando a percepção da ciência como único método possível. 


Críticas contundentes foram proferidas por pensadores tais como Wilhelm Dilthey (1833-1911) e Edmund Husserl* (1859-1938), sobre a neutralidade científica em relação aos interesses econômicos; sobre o intenso desenvolvimento de tecnologias de guerra com grande poder destrutivo; sobre a crença na dominação da natureza, tida como inesgotável e os consequentes desequilíbrios ecológicos; sobre a crença num suposto avanço contínuo da humanidade enfraquecida pela miséria, fome e pandemias.

[* Dilthey – representante do historicismo alemão, promoveu uma análise crítica da razão histórica no sentido de fundamentar a validade das ciências do espírito, rompendo com o pensamento positivista que reduziu o mundo histórico à natureza. Cf. REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: do romantismo até nossos dias. São Paulo: Paulus, 1991.]

[* Husserl – Fundador do da Fenomenologia, corrente de pensamento que teve grande influência no séc. XX. Atento ao desenvolvimento das ciências positivas e também das ciências histórico-sociais, incentivou debates sobre as concepções filosóficas do positivismo.  Cf. REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: do romantismo até nossos dias. São Paulo: Paulus, 1991.]


Uma das críticas mais interessantes foi elaborada por Husserl que observou em seus estudos uma profunda crise nas ciências européias. Uma crise que não repousava sobre a cientificidade* em si, mas sobre o significado das ciências para a humanidade, ou seja, a pretensão segundo a qual a ciência “é a única verdade válida e a ideia a ela ligada de que o mundo descrito pelas ciências seria a verdadeira realidade” (REALE; ANTISERI, 1991, p. 565). Giovani Reale e Dario Antiseri (1991, p. 565,) apontam tal crítica quando citam Edmund Husserl:

Husserl traça a história dessa pretensão e dessa ideia, a começar por Galileu e Descartes. Mas, escreve ele, “na miséria da nossa vida, (...) essa ciência não tem nada a nos dizer. Em princípio, ela exclui aqueles problemas que são os mais candentes para o homem, o qual, em nossos tempos atormentados, sente-se à mercê do destino: os problemas do sentido e do não-sentido da existência humana em seu conjunto.”
...................................................................

Pergunta-se Husserl, “o que tem a dizer essa ciência sobre a razão e sobre a não-razão, o que tem ela a dizer sobre nós, homens, enquanto sujeitos dessa liberdade? Obviamente, a mera ciência de fatos não tem nada a nos dizer a esse respeito: ela, precisamente, abstrai de qualquer sujeito”.


[*Segundo Danilo Marcondes e Hilton Japiassú: “Este termo evoca os critérios que nos permitem definir o que constitui um conhecimento científico de fato e distingui-lo claramente das outras formas de saber não-científicas. Dois são os critérios mais correntes: o recurso à dedução racional e o recurso à verificação experimental. Só há conhecimento científico a partir do momento em que podemos repetir determinado fenômeno ou prever com certeza o aparecimento desse fenômeno, sob determinadas condições”. Cf. JAPIASSÚ, H.; MARCONDES, D. Dicionário básico de filosofia. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.]

A crítica de Dilthey também direcionada ao positivismo focaliza a redução do homem à natureza no momento em que a tradição positivista aplica à dimensão histórica a relação causal-determinista típica das ciências naturais. E assim pretendeu realizar uma análise da razão histórica. Em seu pensamento as ciências da natureza* e as ciências do espírito* se diferenciavam quanto ao seu objeto de investigação. Nas ciências da natureza temos como objeto fenômenos externos ao homem e nas ciências do espírito, o mundo das relações entre os indivíduos, sendo o homem o seu próprio objeto.

[*Para Dilthey, as ciências da natureza são aquelas que viam conhecer causalmente os objetos externos; as ciências do espírito, as que visam compreender o objeto, que é o homem. Sobre isto cf. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1982. p. 130.]

Tanto o pensamento de Husserl, quanto o Dilthey convergem para a problemática do fundamento das ciências do espírito, ou seja, como estas podem ser delimitadas pelas ciências naturais se seus objetos diferem, impossibilitando um saber histórico objetivo?
  
Hans-Georg Gadamer (1900-2002), considerado um dos maiores pensadores da hermenêutica filosófica, observou, no horizonte dessa crítica à tradição positivista, que a consciência histórica caracteriza o homem contemporâneo, porque ele tem plena consciência da historicidade do presente e da relatividade do saber. Entendeu por esse senso histórico, a possibilidade de “superar o modo consequente, a ingenuidade natural que nos leva a julgar o passado pelas medidas supostamente evidentes de nossa vida atual, adotando a perspectiva de nossas instituições, de nossos valores e verdades adquiridas” (2003, p. 18).

Ter uma consciência histórica para este autor significa demonstrar uma posição reflexiva com relação a tudo o que é ensinado pela tradição, ou seja, interpretar (2003, p. 19). Interpretar exige um olhar para além do que é imediato, porque a interpretação é influenciada por ideologias. E neste aspecto acrescenta que as ciências humanas* nos propõem um problema de cunho filosófico: investigar os fundamentos para uma independência epistemológica em face das ciências da natureza, porque reconhecemos “a impossibilidade de submetê-las ao ideal de conhecimento próprio das ciências da natureza” (2003, p. 20). E mais adiante observa “a necessidade é compreender o fenômeno histórico na sua singularidade” (2003, p. 23).

[*C. Humanas –  Segundo Régis Jolivet as ciências humanas eram entendidas à época como “aquelas que, elaboradas por via de métodos positivos, dizem respeito às diferentes atividades, individuais ou coletivas, do homem enquanto ser inteligente e livre. Estas ciências englobam a psicologia, a sociologia, o direito, a etnologia, a história etc.” JOLIVET, R. Vocabulário de filosofia. Rio de Janeiro: Agir, 1975. p. 42.]

De acordo com o exposto até aqui, podemos afirmar que a história do pensamento humano, em particular a história da ciência e do conhecimento é marcada por momentos de passagens que denotam que há uma dinâmica da cultura desvelando o ser humano na sua transcendência, ou seja, um ser que vive o presente, compreende seu passado pelas aprendizagens que assimilou, projeta o seu futuro (SEIBT, 2008). Nenhuma análise pode abordar a produção material e cultural dos homens, sem considerar uma história das ideias que observa o problema do conhecimento (MORAES, 2008, p. 54).


Referências:

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1982.

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. 3. ed. São Paulo: Moderna, 2003.

BRAGA, M.; GUERRA, A.; REIS, J.C. Breve história da ciência moderna, volume 4: a belle-époque da ciência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

HABERMAS, J. Técnica e ciência como ideologia. Lisboa: Edições 70, 1994.

HOBESBAWM, E. Era do extremos: o breve século XX – 1914-1991. São Paulo: Cia das Letras, 1995.

JAPIASSÚ, H.; MARCONDES, D. Dicionário básico de filosofia. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

JOLIVET, R. Vocabulário de filosofia. Rio de Janeiro: Agir, 1975.

KANT, Immanuel. Sobre a expressão corrente: isto pode ser correcto na teoria, mas nada vale na prática. In: A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edições 70, 1990.

LAKATOS, Eva M; MARCONI, Marina de A. Metodologia científica. São Paulo: Atlas, 2000.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

MORAES, Maria Célia M. Notas introdutórias à epistemologia e à história das ciências. In:

HÜHNE, L. M. Filosofia e ciência. Rio de Janeiro: Uapê; SEAF, 2008.

REALE, Giovanni. História da filosofia. São Paulo: Paulus, 1990. V. 1.







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