sexta-feira, 8 de junho de 2012

John Rawls: como é possível uma sociedade justa?


Clara Maria C. Brum de Oliveira

Há muita contradição em razão da desigualdade que marca de maneira significativa a nossa sociedade contemporânea, uma sociedade da tecnologia e da informação. A cada momento situações ofendem nossos valores morais: em razão da pobreza, crianças são vendidas por seus próprios pais a quem tem dinheiro, por exemplo. Muitos vivem em extrema pobreza. Centenas de adolescentes e jovens não têm a possibilidade de frequentar e concluir o ensino fundamental e  médio.

Diante de situações como estas e tantas outras, nos resta perguntar: O que  é uma sociedade justa? Quais os princípios que poderiam regular uma  concepção de justiça distributiva? A teoria da justiça de John Rawls é considerada como uma possível resposta a este problema. Uma resposta, no mínimo interessante para quem guarda essa preocupação republicana.

John Rawls (1921-2002), filósofo americano, foi considerado um dos maiores teóricos da democracia liberal. Sua obra mais significativa, Uma Teoria da Justiça, foi escrita em 1971 e encontra-se inserida na linha de pensamento político inaugurada por John Locke. Segundo o pensamento de Rawls, o indivíduo só experimentaria a plenitude na vida em sociedade se estiver sob condições de justiça.

Segundo Wayne Morrison (2006, p. 468) ao comentar Rawls,

os antecessores intelectuais de Rawls são Kant (que introduz, entre outras coisas, a ideia da primazia do justo (right) sobre o bem (good) e a ideia reguladora do contrato social) e John Stuart Mill (que introduz o espírito de tolerância). A metodologia de Rawls é simples. Ele afirma a primazia da justiça na ordem social; aponta os dados que comprovam a existência de um certo grau de interesse pessoal comum entre as pessoas que constituem uma sociedade (sobrevivência) (...), requer-se um conjunto de princípios que nos permita escolher entre as disposições sociais e subscrever qualquer disposição tendo em vista a distribuição dos bens sociais.

O que é uma sociedade justa? O que nos legitima a identificá-la?

Essa é a pergunta que John Rawls apresentou em seu pensamento político no horizonte de um conflito perene entre os bens disponíveis de uma sociedade, escassos, e o desejo ilimitado de posse por parte dos indivíduos.No horizonte da relação bens-escassos versus desejo de posse. O que nos lembra neste último ponto o pensamento hobbesiano. E, por conseguinte, a reflexão sobre quais os fins que buscamos com nossas ações?

O pensamento político de J. Rawls foi elaborado ao longo do séc. XX, portanto numa fase marcada por dilemas morais e políticos. E talvez essa atmosfera o tenha conduzido à elaboração de uma teoria da justiça, cujo problema foi buscar um pensamento capaz de conjugar dois principais valores morais do mundo moderno, aparentemente (ou intencionalmente) inconciliáveis, se observados sob a ótica das grandes ideologias que dominaram o séc. XX. E que valores são esses? Liberdade e igualdade.

As ideologias do séc. XX tornaram tais valores colidentes e, portanto, o mérito do pensamento de Rawls segundo especialistas foi construir uma teoria da justiça que, ao mesmo tempo, se desvela prudente com o valor liberdade, valor supremo da vida e o valor igualdade, valor fundamental para a  convivência social. Assim, diz-nos Rawls
A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de pensamento. Por mais elegante e econômica que possa ser, uma teoria deve ser rejeitada ou revista se for falsa; da mesma forma, por mais eficientes e bem-ordenadas que sejam as leis e instituições, devem ser reformuladas ou abolidas se forem injustas. (...) A única coisa que nos permite aceitar uma teoria errônea é a falta de uma teoria melhor; analogamente, uma injustiça só será tolerável quando for necessário evitar uma injustiça ainda maior. Por serem virtudes primeiras das atividades humanas, a verdade e a justiça são intransigentes (1971, p. 3/4).

É neste ponto que retoma alguns aspectos da teoria clássica do contrato social e observa que uma sociedade justa, ou seja, uma sociedade bem ordenada, é aquela que compartilha entre seus membros uma concepção pública de justiça para regular a estrutura básica da sociedade. Neste horizonte, partindo da pergunta-problema como se chegar a um entendimento comum sobre o que é justo, Rawls imaginou uma situação hipotética, similar a um estado de natureza que denominou de posição original (original position), apesar de a ideia de uma justiça como equidade e de princípios morais derivarem de uma escolha racional já estar presente no pensamento de Aristóteles com a régua de lesbos e de Immanuel Kant. Por isso, define 
 (...) uma sociedade é bem-ordenada quando não se destina apenas a promover o bem de seus membros, mas também é efetivamente regulada por uma concepção pública de justiça. Em outras palavras, uma sociedade na qual (1) todos aceitam e sabem que os outros aceitam os mesmos princípios de justiça e (2) na qual as instituições sociais básicas geralmente satisfazem e são geralmente conhecidas por satisfazerem esses princípios (RAWLS, 1971, p. 4/5).

O que seria a posição original?

A posição original (original position) é uma ficção útil para que os indivíduos possam escolher princípios de justiça. Tais indivíduos, racionais e razoáveis, estariam sob um véu de ignorância, ou seja, desconheceriam todas as situações que lhe trariam qualquer vantagem ou desvantagem na vida social, tais como: classe social, posição econômica, educação, concepção de bem etc. Todos estariam numa situação equitativa, livres e iguais.

O objetivo de Rawls com a posição original era pensar em estabelecer um procedimento imparcial capaz de permitir a escolha de princípios consensuais justos (MORRISON, 2006, p. 470). Neste ponto, o recurso ao véu de ignorância, ou seja, a um suposto estado de natureza, não se destina à legitimação do poder do Estado como nos contratualistas clássicos, exceto Rousseau, mas como um recurso para fundamentar um processo de escolha de princípios de justiça que são definidos por Rawls como:

Princípio de liberdade: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que sejam compatíveis com um sistema de liberdade para as outras.

Princípio da igualdade: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo: a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável (princípio da diferença); b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos (princípio da igualdade de oportunidades).

O que irá motivar nossas escolhas por trás do véu de ignorância?

Para Rawls, as escolhas decorrem do interesse pessoal, mas em razão do desconhecimento geral que as pessoas têm sobre si mesmas, o interesse pessoal se converte no interesse de qualquer um. A consequência é que princípios resultantes serão aqueles sobre os quais qualquer pessoa teria voluntariamente concordado. Nesse sentido, Rawls formula três princípios que constituem sua concepção de justiça:

Princípio da liberdade igual: A sociedade deve assegurar a máxima liberdade para cada pessoa compatível com uma liberdade igual para todos os outros.

Princípio da diferença: A sociedade deve promover a distribuição igual da riqueza, exceto se a existência de desigualdades econômicas e sociais gerar o maior benefício para os menos favorecidos.

Princípio da oportunidade justa: As desigualdades econômicas e sociais devem estar ligadas a postos e posições acessíveis a todos em condições de justa igualdade de oportunidades.

Há uma situação hipotética em que somos instados a imaginar que nos reunimos para firmar um contrato social que inclua os princípios que nos mantêm unidos na vida. O apelo à posição original e ao véu de ignorância destina-se à escolha de princípios de justiça. Em seu modo de ver esta situação hipotética teria o efeito de invalidar a tese do benefício próprio. Os envolvidos não sabem ou desconhecem  seu lugar na sociedade. “(...) cada um tampouco sabe qual é seu destino na distribuição de recursos e aptidões naturais, sua inteligência, força e coisas do gênero. Da mesma forme, ninguém sabe qual é sua concepção do bem” (MORRISON, 200, p. 470).

Assim, Rawls observou os princípios de justiça que devem ser escolhidos pelos indivíduos, racionais e razoáveis, na posição original, situação hipotética em que  desconhecem qualquer informação particular sobre sua situação na sociedade: princípio da liberdade, da igualdade e o princípio da diferença.

No princípio da liberdade estão as liberdade básicas dos cidadãos, a liberdade política de eleger e ser eleito, a liberdade de pensamentos, de consciência, de expressão, associação, de propriedade pessoal, de proibição de prisão arbitrária, expropriação, etc. No princípio da  igualdade, propõe um sistema político em que as desigualdades sociais e econômicas devem ser organizadas de modo a, simultaneamente,  ofertar maior benefício para os menos favorecidos e se vincularem a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade justa de oportunidades. O princípio da diferença expressa a preocupação com a justa distribuição de recursos econômicos. Para Rawls, o princípio da liberdade guarda uma anterioridade e superioridade em face da igualdade (tradição liberal). O da igualdade de oportunidade, por sua vez, é superior ao princípio da diferença.

O que isso significa?

Significa que é preciso estabelecer uma prioridade entre os princípios. Assim, o princípio da liberdade igual tem prioridade sobre os outros dois e o princípio da oportunidade justa tem prioridade sobre o princípio da diferença. O que faz de Rawls, segundo os especialistas, um liberal com preocupações igualitárias.

Quais são os argumentos de Rawls em favor do princípio da diferença?

1)    O argumento intuitivo da igualdade de oportunidades: as pessoas são moralmente iguais.

Este argumento apela à intuição segundo a qual o destino de uma pessoa deve depender das suas escolhas, e não das circunstâncias. Ninguém deve ter as suas escolhas e ambições negadas pela circunstância de pertencer a uma certa classe social. Logo, como as pessoas são moralmente iguais, o destino de cada um não deve depender da arbitrariedade dos acasos sociais ou naturais.

2) O argumento do contrato social hipotético.

Veja a situação hipotética a seguir: cada um desconhece o seu lugar na sociedade, a sua classe e estatuto social, os seus gostos pessoais e as características psicológicas, a sorte na distribuição dos talentos naturais e que nem sequer conheces a sua concepção de bem, ignorando que coisas fazem uma vida valer a pena. Que princípios de justiça seriam escolhidos por detrás deste véu de ignorância? Aqueles que as pessoas aceitariam porque não teriam como saber se seriam ou não favorecidas pelas contingências sociais ou naturais.

Rawls coloca o justo acima do bem:

Toda pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo pode anular. A justiça nega que, para alguns, a perda da liberdade se torne justa devido a um maior bem compartilhado pelos outros (...); numa sociedade justa, as liberdades da igual cidadania são consideradas firmes; os direitos assegurados pela justiça não são sujeitos a barganhas políticas nem ao cálculo dos interesses sociais (RAWLS, 1971, p. 4)

Então, como concebeu uma sociedade justa?

Aquela em que há duas condições:
1. a igualdade de oportunidade a todos;
2. e o repasse dos benefícios auferidos preferencialmente aos membros menos privilegiados da sociedade – justiça social. Por isso, foi um defensor da justiça como equidade.

E o que seria necessário?

Que os mais afortunados aceitem com benevolência diminuir sua participação material, minimizadas em favor dos desassistidos. O princípio do altruísmo. Esse princípio implica a abdicação consciente de certos privilégios e vantagens materiais legítimas em favor dos socialmente menos favorecidos.

O princípio ético do altruísmo de Rawls inverte o sentido de meritocracia em Platão, bem como refuta o sentido de um darwinismo presente na cultura norte americana. No seu pensamento político, a correção da desigualdade poderia ocorrer com a implementação de uma política calcada na equidade. Para tanto, busca-se mecanismos legislativos compensatórios para reparar as desigualdades, pela lei, com consentimento de todos os membros da sociedade política.

Ocorre que em 1993, Rawls elabora uma obra sob o título Liberalismo Político que representa uma nova versão de sua teoria da justiça expressa na obra de 1971. Nesse sentido, parte de um pluralismo valorativo, ou seja, da multiplicidade de concepções abrangentes da vida social presentes no mundo contemporâneo e argumenta no sentido de uma teoria política, pois, para ele, o maior desafio está em buscar um consenso sobre o que é justo diante da multiplicidade de doutrinas abrangentes. Assim, afirmou que sua teoria observa o que é justo e não o que é moral, ético ou bom.

Quando afirmou que sua teoria observa o que é justo e não o que é moral, ético ou bom,  procurou enfatizar uma concepção pública de justiça compartilhada pela comunidade social. Formulou a tese de um consenso sobreposto que exige a utilização de uma razão pública para se alcançar o consenso. E o que entendeu por uma razão pública? Por razão pública, entendeu a capacidade de colocar-se na esfera pública para alcançar o entendimento em torno dos dissensos que resultam da pluralidade de doutrinas abrangentes.

Críticas:

Os liberais:
O liberalismo, defensores do capitalismo anárquico, cujo expoente é Robert Nozick, condenaram a ênfase na igualdade de Rawls em favor da vigência absoluta da liberdade em seu sentido negativo, ou seja, não interferência do Estado na vida privada.

Os comunitaristas:
Defendem a inserção do indivíduo no coletivo e a superioridade da moral e da ética sobre a justiça procedimental. Temos como expoentes dessa corrente, Charles Taylor, Michael Sandel, Michael Walzer e MacIntyre.

Jürgen Habermas:
Debateu diretamente com Rawls e defendeu uma democracia deliberativa. Para Habermas, os princípios e a estrutura básica de uma sociedade devem ser definidos através de um procedimento democrático radical aberto ao diálogo e ao entendimento. A obra A inclusão do outro toca nesta crítica ao pensamento de Rawls.

Referências:
MORRISON, Wayne. Filosofia do Direito. Dos gregos ao pós-modernismo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
______. liberalismo político. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
OLIVEIRA, Nythamar de. Rawls. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
OLIVEIRA, Clara Maria C. Brum de . Considerações sobre a posição original de J. Rawls. In: Tramarevista dos pós-granduandos em Filosofia pela UERJ. N.7, 1996, p. 89-103.
VAZ, Faustino. Uma teoria da justiça de John Rawls. Disponível em:
<http://criticanarede.com/pol_justica.html>. Acesso em: 22 nov. 2011.



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