domingo, 3 de junho de 2012

A mentira da verdade e a verdade da mentira: comentários sobre a crítica de Nietzsche à teoria do conhecimento



Clara Maria C. Brum de Oliveira



“No fundo, o homem vígil só tem a certeza de estar desperto devido 


à teia dos conceitos sólida e regular, e precisamente por isso cai 
às vezes na crença de que está a sonhar 
quando esta teia de conceitos é ocasionalmente rasgada pela arte”.

Este texto é uma apresentação sintética e seletiva das ideias de Nietzsche  no texto “Acerca da verdade e da mentira no sentido extramoral” (1783), ressaltando a progressão e a articulação que configuram. O assunto é  a genealogia da verdade, com o objetivo de desvelar a  verdadeira face do impulso à verdade como um esquecimento da mentira original. Nietzsche articula suas ideias através do uso de metáforas com figuras de animais: mosquito, serpente, aranha, abelha e pássaro; com construções humanas: pirâmides, columbário romano e castelos; objetos: folha, tubo inflável, dados, moeda e planta; com culturas: egípcias, romanas e etruscas. A sua crítica refere-se  à teoria do conhecimento e, consequentemente, à metafísica, ressaltando quão importante foi,  e ainda é, no meio filosófico, a discussão sobre o que é a verdade. Assim, perguntar  sobre a verdade, significa formular também a seguinte pergunta: o que é o homem?
Nas suas primeiras linhas, nosso autor  apresenta um ponto de vista muito especial, um ponto de vista distanciado, fora do mundo, em algum lugar fora da história, sob um olhar extramoral quando nos diz a seguinte fábula: “Num certo canto remoto do universo cintilante vertido em incontáveis sistemas solares havia uma vez um astro onde animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e hipócrita da < história mundial>, mas foi apenas um minuto. Depois de a natureza ter respirado umas poucas vezes, o astro enregelou e os animais inteligentes tiveram de morrer”(215). Por trás dessa fábula,  percebemos a delimitação do problema proposto por Nietzsche e a formulação de sua tese que  pretende apontar que o mundo nada mais é do que uma invenção humana e como tal poderia ser criado de outra maneira.
Nietzsche ressalta que a cultura só encontra sentido para o seu intelecto. Este intelecto surge de forma arbitrária como instrumento de conservação do aparentemente mais fraco, cuja força repousa na dissimulação. Essa arrogância  poderá ser  a suprema ilusão não só do homem, mas também do ser mais ínfimo, o mosquito. Nietzsche recorda a natural desigualdade dos homens relacionados entre si e em relação aos animais. Para Nietzsche, a ausência de características animalescas no homem, como chifres e presas,  propiciou o desenvolvimento do intelecto: “O intelecto, como meio para a conservação do indivíduo, desenvolve as suas forças dominantes na dissimulação, pois este é o meio graças ao qual os indivíduos mais fracos, os menos robustos, se conservam e aos quais está vedado lutar pela existência com o auxílio de chifres ou de dentes afiados das feras”( 216).[1] A crítica de Nietzsche traz a lume a ideia de que o conhecimento por ser humano é sempre relativo e jamais absoluto, pois o que chamamos de verdadeiro ou falso é sempre algo estabelecido por nós. Portanto, “para este intelecto não há outra missão que transcenda a vida humana. Antes pelo contrário ele é humano, e só o seu dono e progenitor o encara tão pateticamente como se ele fosse o eixo à volta do qual gira o mundo”(215). O homem desenvolve o intelecto como uma força capaz de autoconservação. Nietzsche se refere à mudança de método na maneira de pensar proposta pela teoria do conhecimento de Kant, “a saber, que só conhecemos a priori das coisas o que nós mesmos nelas pomos”[2]
Se o homem vive no erro, no esquecimento sobre si mesmo, mostra-se bastante paradoxal a busca pela verdade: “não há quase nada mais inconcebível do que o aparecimento nos homens de um impulso honesto e puro para a verdade”(216). Os argumentos de Nietzsche apontam para a hipótese de que a verdade e a mentira nasceram de uma convenção necessária para sobrevivência do grupo. O impulso à verdade, é um fingimento, um esquecimento. Assim, chama atenção para o fato de que nós convencionamos todas as coisas a serem como que são, convenções arbitrárias. Por conseguinte, só podemos ver “os fenômenos” para usar um termo de Kant, ou seja,  o nosso “olhar só desliza pela superfície das coisas e vê aí < formas>, a sua percepção não conduz em parte alguma à verdade”(216). Torna-se imperativo colocar-se fora da sociedade ( ponto de vista extramoral), para além da história, para vermos o real, o efetivo, que o homem vive no esquecimento desse acordo original que sub-roga a mentira pela verdade, o esquecimento de si em favor da ilusão necessária à conservação. O conhecimento é uma criação do homem como meio de dissimular a sua fraqueza. A verdade e a mentira são criações do homem; o criar está na ótica do estético, na ótica da arte.
A origem do impulso à verdade está no suposto início da sociedade marcado pela idéia de uma passagem de um estado natural para o jurídico através do contrato social que em suas cláusulas estabeleceu verdades e mentiras. As teorias contratualistas, que formularam meras ficções sobre uma suposta mudança que marcaria o início da sociedade configuram o fundamento do sentido de responsabilidade, dever, coação e poder do Estado como valores verdadeiros.  Nesse momento, Nietzsche comenta a célebre frase de Hobbes: o homem é lobo de todo homem, para ressaltar o surgimento de uma verdade através da linguagem, capaz de exercer o papel de fundante, pois “é inventada uma designação das coisas tão válida como vinculativa e a legislação da língua produz também as primeiras leis da verdade, pois aqui surge pela primeira vez o contraste entre verdade e mentira. O mentiroso utiliza as designações válidas, as palavras, para fazer com que o irreal pareça real”(217). A linguagem surge como  expressão adequada de todas as coisas, mas no entanto é totalmente arbitrária e superficial, pois através dela não reproduzo a realidade das coisas.
O ponto central para Nietzsche é  saber como a verdade se tornou um valor fundamental para a vida e de onde provém esse impulso à verdade, pois surge dentro de um contexto cheio de mentiras com o propósito de garantir a convivência do grupo. Essa verdade criou deveres, direitos, responsabilidade, como ilusões absolutamente necessárias. Enfim, criou valores, estabeleceu regras, inventou a moral. Por isso, Nietzsche entende que existem apenas arbitrariedades, um jogo de nomeações que não exprimem a verdadeira essência das coisas que existem fora de nós. O conhecimento como afirmou Kant “apenas se refere à fenômenos e não às coisas em si que embora em si mesmas reais, se mantêm para nós incognoscíveis”.[3] Nesse  sentido, a verdade dará conta de apenas um aspecto da coisa, aquilo que foi condicionado a ser de  uma maneira e não de outra. Esse é o jogo que Nietzsche aponta concorde com Kant: nós vemos nas coisas aquilo que nelas pomos. A verdade só é possível  no âmbito dessa história.  Mas o fato de Nietzsche desencantar a verdade não implica necessariamente apresentar outro sentido de verdade, não podemos  acusá-lo de auto contradição performativa,  pois sua intenção era apenas estudar uma possível genealogia e perceber o sentido da verdade na história humana.
A primeira implicação dessa tese é a ideia da  mentira da verdade. Logo,  como é possível pensar na verdade como adequação, se esta somente se apresenta por convenção, relacionando coisas distintas como se estivessem intimamente ligadas (a estrutura física de um objeto qualquer e o nome dado por nós a esse objeto). Que é uma palavra senão “a representação sonora de um estímulo nervoso”(218). Mas estas representações sonoras, ou palavras são denominações arbitrárias, servem para ligar os indivíduos entre si, jamais para comunicar a essência dos seres ou coisas, do contrário não existiriam tantas línguas distintas. Com isso,  Nietzsche focaliza a possibilidade de uma transposição de uma esfera à outra e mais uma vez lembra-nos Kant que ao formular a questão central de sua  primeira crítica - como são possíveis os juízos sintéticos a priori? -  também estabeleceu uma transposição entre duas esferas distintas, a saber,  a empírica e a pura. Kant fundamentou a sua hipótese acerca de tais juízos sintéticos a priori  nos juízos da matemática e é oportuno trazer  à luz esse exemplo, pois acredito que poderá  iluminar as críticas de Nietzsche à teoria do conhecimento. Na introdução da segunda edição da Crítica da Razão Pura, Kant apresenta o exemplo de um juízo sintético a priori da matemática << 7 + 5 = 12 >> onde o número 12 não é pensado no número 5 ou 7. O fato é que o número 12 surge com a ajuda da intuição; tomo o número 7 e por meio da intuição alcanço o número 5, ou seja, adiciono mediante um processo figurativo ( somo os dedos) e alcanço o número 12. Encontrei tal número mediante a intuição.[4]
Nietzsche compreendeu que “julgamos saber algo das próprias  coisas quando falamos de árvores, cores, neve e flores e, no entanto, não dispomos senão de metáforas das coisas que não correspondem de forma alguma às essencialidades primordiais” e mais adiante acrescenta “o enigmático X da coisa em si é tomado uma vez como estimulação nervosa, depois como imagem, finalmente como som” (219-20). Na verdade, a linguagem é aparência, fala do que simplesmente aparece e não das coisas em si mesmas, porque não é próprio do homem ultrapassar os limites do seu conhecer intelectual. Somente quando me esqueço dessa característica fundamental da linguagem é que me convenço de que tenho verdades. O conhecimento é sempre antropomórfico – fora dessa fronteira não  posso falar de mais nada.
O que parece encobrir essa limitação do conhecimento é o conceito. Sobre  sua formação Nietzsche afirma que “Cada palavra torna-se de imediato conceito por precisamente não dever servir para a experiência originária única e totalmente individualizada, à qual deve a sua emergência, algo como recordação”(220). O conceito iguala os não iguais, suprime as diferenças, ou como diz o autor,  abandona as diferenças individuais por um esquecimento do que as diferencia, podemos dizer, um esquecimento do que não é antropomórfico; o conceito é um instrumento do pensamento lógico que une o idêntico ao não idêntico. Assim, a verdade é então “Um exército móvel de metáforas, de metonímias, de antropomorfismos”(221). É o que convencionamos como verdadeiro dentro do âmbito de determinado momento  histórico, daí o seu olhar extramoral. Olhar que permite desvelar a inventividade em nome da manutenção da vida.  Verdade e mentira são faces da mesma criação.
Parece-me que o texto desvela o “esquecimento” como ponto fundamental da genealogia da verdade. De que forma ele é possível? Nietzsche acredita que a força do hábito faz com que o homem esqueça e por meio desse esquecimento chegue ao sentimento da verdade. Assim, a ilusão de um mundo verdadeiro se torna de tal modo imperativo que se transforma em princípio de realidade. O  impulso à verdade é o impulso ao “mentir de modo gregário”(222) é a obrigação de mentir para  garantir o status quo. “Tudo o que distingue o homem do animal depende dessa faculdade de reduzir as metáforas intuitivas a um esquema e, portanto, de dissolver uma imagem num conceito”(222). Nessa passagem,  encontramos uma  menção expressa à Kant  através do termo “esquema”. Nietzsche e Kant apontaram a impossibilidade do conhecimento do que está para além do mundo humano, entretanto a crítica de Nietzsche aponta para a estrutura  da teoria do conhecimento de Kant, como uma estrutura que mortifica, que obscurece a vida. Talvez seja essa estrutura a que ele denomina de “pirâmide” ou “columbário romano”.
Kant organizou o conhecimento na seguinte estrutura: por um lado,  a Estética Transcendental ou Teoria da Sensibilidade; por outro, a Lógica Transcendental ou Teoria do Entendimento. Ambas as partes constituídas por formas a priori denominadas de  espaço e tempo no caso da sensibilidade e categorias, no caso do entendimento. A faculdade intermediária é a da imaginação  que é capaz de  representar na intuição um objeto, mesmo na sua ausência. Esta terceira parte foi denominada por Kant  de  Esquema Transcendental ou Teoria da Imaginação. Kant justificou o nome “esquema” argumentando que a imaginação produz esquemas ou sínteses figuradas que prendem as  sínteses intelectuais donde resultam os conceitos. Diz Kant: “Daremos o nome de esquema a esta condição formal e pura da sensibilidade a que o conceito do entendimento está restringindo no seu uso e o de esquematismo do entendimento puro ao processo pelo qual o entendimento opera com esses esquemas. O esquema é sempre e apenas um produto da imaginação”.[5]  Os esquemas transcendentais são condições de aplicação das categorias do entendimento à experiência sensível, ou seja, liga o fenômeno à categoria. Possui uma ação reprodutora pois elabora um quadro ou imagem da percepção e se aproxima do entendimento, superando a diferença entre conceitos e intuições – processo de mediação entre espírito e mundo.
Para Nietzsche, o homem conseguiu construir a sua cultura  sobre “fundações movediças”(223). Tudo não  passou de um jogo cujas regras previamente estabelecidas garantem as condições de possibilidade de sua própria existência. A sua crítica aponta, por um lado, para os fundamentos e limites da civilização, ressaltando a arrogância humana de querer impor leis à natureza, enfim ao mundo da natureza e, por outro, um paradoxo inevitável: a racionalidade funda-se sobre  crenças, símbolos e valores. O mundo assombrado pela verdade nos fala da história da civilização humana que menospreza a arte considerando-a ilógica, irracional e ilusória.
Por isso, Nietzsche nos propõe o problema da verdade como uma tragédia – desvelando um segredo terrificante para o homem teórico: a mentira da verdade e a verdade da mentira; “apenas porque – diz Nietzsche- o homem se esquece de si enquanto sujeito, e enquanto sujeito criador e artista, vive ele com algum descanso, segurança e coerência”(225) e mais adiante acrescenta: “Já lhe é penoso reconhecer como o inseto ou o pássaro percepcionam um mundo completamente diferente daquele que o homem percepciona, e que a questão quanto a saber qual das duas percepções do mundo é a mais correta é uma questão totalmente absurda, pois para ser respondida deveria já ser medida com o padrão da percepção correta, isto é, com um padrão que não existe”(225). Insetos , pássaros, vermes, serpentes e homens – diferentes percepções do mundo que Nietzsche parece apontar no propósito de nos revelar  que não existe um ponto de vista privilegiado, mas o esquecimento de que não há um mundo verdadeiro. Nos deixa diante de indagações dolorosas para o homem teórico, homem socrático, a saber: qual o valor efetivamente da verdade? Qual o valor dessa crença? A racionalidade está fundada em areia movediça, fundada em crenças. Nós criamos  essa racionalidade para um certo uso social dos valores, das crenças, dos símbolos, não importa saber se são efetivamente verdadeiros ou falsos. O homem exige a verdade e a realiza na vida moral e é sobre este fato que  organiza a sua vida em sociedade.
Enfim, a crítica de Nietzsche à Teoria do Conhecimento compreende-se como uma crítica à moral, aos valores humanos. Quando a realiza aponta para a idéia de verdade, criação humana que lentamente  ganhou autonomia e passou a dominar o próprio homem – a criatura contra seu próprio criador. Trata-se de uma visão do conhecimento como algo instrumental. Compreender suas palavras significa considerar também a influência da ciência do seu tempo. Certamente, ele reconhece o  avanço das ciências positivistas, mas as considerou presas à ilusão de deter a verdade.


Nietzsche, F. O Nascimento da Tragédia e acerca da Verdade e da mentira. Lisboa, Relógio d’água, 1997.

[1] Lembra Kant no texto Idéia de uma História Universal sob o ponto de vista Cosmopolita, quando menciona: “A natureza não faz verdadeiramente nada supérfluo e não é perdulária no uso dos meios para atingir seus fins. Tendo dado ao homem a razão e liberdade da vontade que nela se funda, a natureza forneceu um claro indício de seu propósito quanto à maneira de dotá-lo. Ele não deveria ser guiado pelo instinto, ou ser provido e ensinado pelo conhecimento inato; ele deveria, antes, tirar tudo de si mesmo. A obtenção dos meios de subsistência, de suas vestimentas, a conquista da segurança externa e da defesa ( razão pela qual a natureza não lhe deu os chifres do touro, nem as garras do leão, nem, os dentes do cachorro, mas somente mãos), todos os prazeres que podem tornar a vida  agradável, mesmo sua perspicácia e prudência e até a bondade de sua vontade tiveram de ser inteiramente sua própria obra”.  Kant, I. Ideia de uma História Universal de um ponto de vista cosmopolita. São Paulo, Brasiliense, 1986, p. 12.
[2] Kant, I. Crítica da Razão Pura. Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1994, BXVIII.
[3] Idem, ibidem,  BXX.
[4] Idem, ibidem, B16
[5] Idem, ibidem, B176.

3 comentários:

  1. Este foi um texto produzido durante a minha graduação em Filosofia na UERJ, para a profª Rosa Dias. Uma pesquisa despretenciosa que liga Nietzsche a Kant.
    Espero que gostem. Resgatei diretamente do baú.
    abs

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  2. Perfeito! Estou inebriado em suas palavras ditas, “despretensiosas”...

    E, vou dizer-lhe: Acho totalmente viável a comparação fática da abordagem “nietzscheniana” como parâmetro circunstancial ou complemento de inúmeras” outras filosofias”, neste sentido, concepções filosóficas de outros autores.

    Nietzsche é um dos que mais gosto de ler ! Acho que os "aforismos" dele são uma outra forma de observar o ângulo invertido das coisas e pessoas, originado-se assim um “status quo” da verdade primordial, difusa em ramificações da verdade relativizada conforme o livre arbítrio do pensar de cada ser humano. Talvez a morbidez das palavras dele pesem ao crivo dos leitores, pois que Nietzsche era um solitário convicto e detestava qualquer esfera de sociabilidade humana (e isto era observado na sua forma de expressar-se), mas, ainda sim, suas palavras desnudam-se no caos do homem perante a sua própria imagem íntima.

    Beijos.

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  3. Oi Abraão, obrigada por sua colocação. Também tenho essa impressão de Nietzsche!

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