Clara Maria C. Brum de Oliveira
“No fundo, o homem vígil só tem a certeza de estar desperto devido
à teia dos conceitos sólida e regular, e precisamente por
isso cai
às vezes na crença de que está a sonhar
quando esta teia de conceitos
é ocasionalmente rasgada pela arte”.
Este texto é uma apresentação sintética e seletiva
das ideias de Nietzsche no texto “Acerca
da verdade e da mentira no sentido extramoral” (1783), ressaltando a progressão
e a articulação que configuram. O assunto é
a genealogia da verdade, com o objetivo de desvelar a verdadeira face do impulso à verdade como um
esquecimento da mentira original. Nietzsche articula suas ideias através do uso
de metáforas com figuras de animais: mosquito, serpente, aranha, abelha e
pássaro; com construções humanas: pirâmides, columbário romano e castelos;
objetos: folha, tubo inflável, dados, moeda e planta; com culturas: egípcias,
romanas e etruscas. A
sua crítica refere-se à teoria do
conhecimento e, consequentemente, à metafísica, ressaltando quão importante foi, e ainda é, no meio filosófico, a discussão sobre
o que é a verdade. Assim, perguntar
sobre a verdade, significa formular também a seguinte pergunta: o que é
o homem?
Nas suas primeiras linhas, nosso autor apresenta um ponto de vista muito especial,
um ponto de vista distanciado, fora do mundo, em algum lugar fora da história,
sob um olhar extramoral quando nos diz a seguinte fábula: “Num certo canto
remoto do universo cintilante vertido em incontáveis sistemas solares havia uma
vez um astro onde animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto
mais soberbo e hipócrita da < história mundial>, mas foi apenas um
minuto. Depois de a natureza ter respirado umas poucas vezes, o astro enregelou
e os animais inteligentes tiveram de morrer”(215). Por trás dessa fábula, percebemos a delimitação do problema proposto
por Nietzsche e a formulação de sua tese que
pretende apontar que o mundo nada mais é do que uma invenção humana e
como tal poderia ser criado de outra maneira.
Nietzsche ressalta que a cultura só encontra sentido
para o seu intelecto. Este intelecto surge de forma arbitrária como instrumento
de conservação do aparentemente mais fraco, cuja força repousa na dissimulação.
Essa arrogância poderá ser a suprema ilusão não só do homem, mas também
do ser mais ínfimo, o mosquito. Nietzsche recorda a natural desigualdade dos
homens relacionados entre si e em relação aos animais. Para Nietzsche, a
ausência de características animalescas no homem, como chifres e presas, propiciou o desenvolvimento do intelecto: “O
intelecto, como meio para a conservação do indivíduo, desenvolve as suas forças
dominantes na dissimulação, pois este é o meio graças ao qual os indivíduos
mais fracos, os menos robustos, se conservam e aos quais está vedado lutar pela
existência com o auxílio de chifres ou de dentes afiados das feras”( 216).[1]
A crítica de Nietzsche traz a lume a ideia de que o conhecimento por ser humano
é sempre relativo e jamais absoluto, pois o que chamamos de verdadeiro ou falso
é sempre algo estabelecido por nós. Portanto, “para este intelecto não há outra
missão que transcenda a vida humana. Antes pelo contrário ele é humano, e só o
seu dono e progenitor o encara tão pateticamente como se ele fosse o eixo à
volta do qual gira o mundo”(215). O homem desenvolve o intelecto como uma força
capaz de autoconservação. Nietzsche se refere à mudança de método na maneira de
pensar proposta pela teoria do conhecimento de Kant, “a saber, que só
conhecemos a priori das coisas o que nós mesmos nelas pomos”[2]
Se o homem vive no erro, no esquecimento sobre si
mesmo, mostra-se bastante paradoxal a busca pela verdade: “não há quase nada
mais inconcebível do que o aparecimento nos homens de um impulso honesto e puro
para a verdade”(216). Os argumentos de Nietzsche apontam para a hipótese de que
a verdade e a mentira nasceram de uma convenção necessária para sobrevivência
do grupo. O impulso à verdade, é um fingimento, um esquecimento. Assim, chama
atenção para o fato de que nós convencionamos todas as coisas a serem como que
são, convenções arbitrárias. Por conseguinte, só podemos ver “os fenômenos”
para usar um termo de Kant, ou seja, o
nosso “olhar só desliza pela superfície das coisas e vê aí < formas>, a
sua percepção não conduz em parte alguma à verdade”(216). Torna-se imperativo
colocar-se fora da sociedade ( ponto de vista extramoral), para além da
história, para vermos o real, o efetivo, que o homem vive no esquecimento desse
acordo original que sub-roga a mentira pela verdade, o esquecimento de si em
favor da ilusão necessária à conservação. O conhecimento é uma criação do homem
como meio de dissimular a sua fraqueza. A verdade e a mentira são criações do
homem; o criar está na ótica do estético, na ótica da arte.
A origem do impulso à verdade está no suposto início
da sociedade marcado pela idéia de uma passagem de um estado natural para o
jurídico através do contrato social que em suas cláusulas estabeleceu verdades
e mentiras. As teorias contratualistas, que formularam meras ficções sobre uma
suposta mudança que marcaria o início da sociedade configuram o fundamento do
sentido de responsabilidade, dever, coação e poder do Estado como valores
verdadeiros. Nesse momento, Nietzsche
comenta a célebre frase de Hobbes: o homem é lobo de todo homem, para ressaltar
o surgimento de uma verdade através da linguagem, capaz de exercer o papel de
fundante, pois “é inventada uma designação das coisas tão válida como
vinculativa e a legislação da língua produz também as primeiras leis da
verdade, pois aqui surge pela primeira vez o contraste entre verdade e mentira.
O mentiroso utiliza as designações válidas, as palavras, para fazer com que o
irreal pareça real”(217). A linguagem surge como expressão adequada de todas as coisas, mas no
entanto é totalmente arbitrária e superficial, pois através dela não reproduzo
a realidade das coisas.
O ponto central para Nietzsche é saber como a verdade se tornou um valor
fundamental para a vida e de onde provém esse impulso à verdade, pois surge
dentro de um contexto cheio de mentiras com o propósito de garantir a
convivência do grupo. Essa verdade criou deveres, direitos, responsabilidade,
como ilusões absolutamente necessárias. Enfim, criou valores, estabeleceu
regras, inventou a moral. Por isso, Nietzsche entende que existem apenas
arbitrariedades, um jogo de nomeações que não exprimem a verdadeira essência
das coisas que existem fora de nós. O conhecimento como afirmou Kant “apenas se
refere à fenômenos e não às coisas em si que embora em si mesmas reais, se mantêm
para nós incognoscíveis”.[3]
Nesse sentido, a verdade dará conta de
apenas um aspecto da coisa, aquilo que foi condicionado a ser de uma maneira e não de outra. Esse é o jogo que
Nietzsche aponta concorde com Kant: nós vemos nas coisas aquilo que nelas
pomos. A verdade só é possível no âmbito
dessa história. Mas o fato de Nietzsche
desencantar a verdade não implica necessariamente apresentar outro sentido de
verdade, não podemos acusá-lo de auto
contradição performativa, pois sua
intenção era apenas estudar uma possível genealogia e perceber o sentido da
verdade na história humana.
A primeira implicação dessa tese é a ideia da mentira da verdade. Logo, como é possível pensar na verdade como
adequação, se esta somente se apresenta por convenção, relacionando coisas
distintas como se estivessem intimamente ligadas (a estrutura física de um
objeto qualquer e o nome dado por nós a esse objeto). Que é uma palavra senão
“a representação sonora de um estímulo nervoso”(218). Mas estas representações
sonoras, ou palavras são denominações arbitrárias, servem para ligar os
indivíduos entre si, jamais para comunicar a essência dos seres ou coisas, do
contrário não existiriam tantas línguas distintas. Com isso, Nietzsche focaliza a possibilidade de uma
transposição de uma esfera à outra e mais uma vez lembra-nos Kant que ao
formular a questão central de sua
primeira crítica - como são possíveis os juízos sintéticos a priori?
- também estabeleceu uma transposição
entre duas esferas distintas, a saber, a
empírica e a pura. Kant fundamentou a sua hipótese acerca de tais juízos
sintéticos a priori nos juízos da
matemática e é oportuno trazer à luz
esse exemplo, pois acredito que poderá
iluminar as críticas de Nietzsche à teoria do conhecimento. Na
introdução da segunda edição da Crítica da Razão Pura, Kant apresenta o
exemplo de um juízo sintético a priori da matemática << 7 + 5 = 12
>> onde o número 12 não é pensado no número 5 ou 7. O fato é que o número
12 surge com a ajuda da intuição; tomo o número 7 e por meio da intuição
alcanço o número 5, ou seja, adiciono mediante um processo figurativo ( somo os
dedos) e alcanço o número 12. Encontrei tal número mediante a intuição.[4]
Nietzsche compreendeu que “julgamos saber algo das
próprias coisas quando falamos de
árvores, cores, neve e flores e, no entanto, não dispomos senão de metáforas
das coisas que não correspondem de forma alguma às essencialidades primordiais”
e mais adiante acrescenta “o enigmático X da coisa em si é tomado uma vez como
estimulação nervosa, depois como imagem, finalmente como som” (219-20). Na
verdade, a linguagem é aparência, fala do que simplesmente aparece e não das
coisas em si mesmas, porque não é próprio do homem ultrapassar os limites do
seu conhecer intelectual. Somente quando me esqueço dessa característica
fundamental da linguagem é que me convenço de que tenho verdades. O
conhecimento é sempre antropomórfico – fora dessa fronteira não posso falar de mais nada.
O que parece encobrir essa limitação do conhecimento
é o conceito. Sobre sua formação
Nietzsche afirma que “Cada palavra torna-se de imediato conceito por
precisamente não dever servir para a experiência originária única e totalmente
individualizada, à qual deve a sua emergência, algo como recordação”(220). O
conceito iguala os não iguais, suprime as diferenças, ou como diz o autor, abandona as diferenças individuais por um
esquecimento do que as diferencia, podemos dizer, um esquecimento do que não é
antropomórfico; o conceito é um instrumento do pensamento lógico que une o
idêntico ao não idêntico. Assim, a verdade é então “Um exército móvel de
metáforas, de metonímias, de antropomorfismos”(221). É o que convencionamos
como verdadeiro dentro do âmbito de determinado momento histórico, daí o seu olhar extramoral. Olhar
que permite desvelar a inventividade em nome da manutenção da vida. Verdade e mentira são faces da mesma criação.
Parece-me que o texto desvela o “esquecimento” como
ponto fundamental da genealogia da verdade. De que forma ele é possível?
Nietzsche acredita que a força do hábito faz com que o homem esqueça e por meio
desse esquecimento chegue ao sentimento da verdade. Assim, a ilusão de um mundo
verdadeiro se torna de tal modo imperativo que se transforma em princípio de
realidade. O impulso à verdade é o
impulso ao “mentir de modo gregário”(222) é a obrigação de mentir para garantir o status quo. “Tudo o que
distingue o homem do animal depende dessa faculdade de reduzir as metáforas
intuitivas a um esquema e, portanto, de dissolver uma imagem num
conceito”(222). Nessa passagem,
encontramos uma menção expressa à
Kant através do termo “esquema”. Nietzsche
e Kant apontaram a impossibilidade do conhecimento do que está para além do
mundo humano, entretanto a crítica de Nietzsche aponta para a estrutura da teoria do conhecimento de Kant, como uma
estrutura que mortifica, que obscurece a vida. Talvez seja essa estrutura a que
ele denomina de “pirâmide” ou “columbário romano”.
Kant organizou o conhecimento na seguinte estrutura:
por um lado, a Estética Transcendental
ou Teoria da Sensibilidade; por outro, a Lógica Transcendental ou Teoria do
Entendimento. Ambas as partes constituídas por formas a priori
denominadas de espaço e tempo no caso da
sensibilidade e categorias, no caso do entendimento. A faculdade intermediária
é a da imaginação que é capaz de representar na intuição um objeto, mesmo na
sua ausência. Esta terceira parte foi denominada por Kant de
Esquema Transcendental ou Teoria da Imaginação. Kant justificou o nome
“esquema” argumentando que a imaginação produz esquemas ou sínteses figuradas
que prendem as sínteses intelectuais
donde resultam os conceitos. Diz Kant: “Daremos o nome de esquema a esta
condição formal e pura da sensibilidade a que o conceito do entendimento está
restringindo no seu uso e o de esquematismo do entendimento puro ao
processo pelo qual o entendimento opera com esses esquemas. O esquema é
sempre e apenas um produto da imaginação”.[5] Os esquemas transcendentais são condições de
aplicação das categorias do entendimento à experiência sensível, ou seja, liga
o fenômeno à categoria. Possui uma ação reprodutora pois elabora um quadro ou
imagem da percepção e se aproxima do entendimento, superando a diferença entre
conceitos e intuições – processo de mediação entre espírito e mundo.
Para Nietzsche, o homem conseguiu construir a sua
cultura sobre “fundações
movediças”(223). Tudo não passou de um
jogo cujas regras previamente estabelecidas garantem as condições de possibilidade
de sua própria existência. A sua crítica aponta, por um lado, para os
fundamentos e limites da civilização, ressaltando a arrogância humana de querer
impor leis à natureza, enfim ao mundo da natureza e, por outro, um paradoxo
inevitável: a racionalidade funda-se sobre
crenças, símbolos e valores. O mundo assombrado pela verdade nos fala da
história da civilização humana que menospreza a arte considerando-a ilógica,
irracional e ilusória.
Por isso, Nietzsche nos propõe o problema da verdade
como uma tragédia – desvelando um segredo terrificante para o homem teórico: a
mentira da verdade e a verdade da mentira; “apenas porque – diz Nietzsche-
o homem se esquece de si enquanto sujeito, e enquanto sujeito criador e
artista, vive ele com algum descanso, segurança e coerência”(225) e mais
adiante acrescenta: “Já lhe é penoso reconhecer como o inseto ou o pássaro
percepcionam um mundo completamente diferente daquele que o homem percepciona,
e que a questão quanto a saber qual das duas percepções do mundo é a mais
correta é uma questão totalmente absurda, pois para ser respondida deveria já
ser medida com o padrão da percepção correta, isto é, com um padrão que não
existe”(225). Insetos , pássaros, vermes, serpentes e homens – diferentes
percepções do mundo que Nietzsche parece apontar no propósito de nos
revelar que não existe um ponto de vista
privilegiado, mas o esquecimento de que não há um mundo verdadeiro. Nos deixa
diante de indagações dolorosas para o homem teórico, homem socrático, a saber:
qual o valor efetivamente da verdade? Qual o valor dessa crença? A
racionalidade está fundada em areia movediça, fundada em crenças. Nós
criamos essa racionalidade para um certo
uso social dos valores, das crenças, dos símbolos, não importa saber se são
efetivamente verdadeiros ou falsos. O homem exige a verdade e a realiza na vida
moral e é sobre este fato que organiza a
sua vida em sociedade.
Enfim, a crítica de Nietzsche à Teoria do
Conhecimento compreende-se como uma crítica à moral, aos valores humanos.
Quando a realiza aponta para a idéia de verdade, criação humana que
lentamente ganhou autonomia e passou a
dominar o próprio homem – a criatura contra seu próprio criador. Trata-se de
uma visão do conhecimento como algo instrumental. Compreender suas palavras
significa considerar também a influência da ciência do seu tempo. Certamente,
ele reconhece o avanço das ciências
positivistas, mas as considerou presas à ilusão de deter a verdade.
Nietzsche,
F. O Nascimento da Tragédia e acerca da Verdade e da mentira. Lisboa,
Relógio d’água, 1997.
[1] Lembra Kant no texto Idéia de
uma História Universal sob o ponto de vista Cosmopolita, quando menciona:
“A natureza não faz verdadeiramente nada supérfluo e não é perdulária no uso
dos meios para atingir seus fins. Tendo dado ao homem a razão e liberdade da
vontade que nela se funda, a natureza forneceu um claro indício de seu
propósito quanto à maneira de dotá-lo. Ele não deveria ser guiado pelo
instinto, ou ser provido e ensinado pelo conhecimento inato; ele deveria,
antes, tirar tudo de si mesmo. A obtenção dos meios de subsistência, de suas
vestimentas, a conquista da segurança externa e da defesa ( razão pela qual a
natureza não lhe deu os chifres do touro, nem as garras do leão, nem, os dentes
do cachorro, mas somente mãos), todos os prazeres que podem tornar a vida agradável, mesmo sua perspicácia e prudência
e até a bondade de sua vontade tiveram de ser inteiramente sua própria
obra”. Kant, I. Ideia de uma História
Universal de um ponto de vista cosmopolita. São Paulo, Brasiliense, 1986,
p. 12.
[2] Kant, I. Crítica da Razão
Pura. Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1994, BXVIII.
[3] Idem, ibidem, BXX.
[4] Idem, ibidem, B16
[5] Idem, ibidem, B176.
Este foi um texto produzido durante a minha graduação em Filosofia na UERJ, para a profª Rosa Dias. Uma pesquisa despretenciosa que liga Nietzsche a Kant.
ResponderExcluirEspero que gostem. Resgatei diretamente do baú.
abs
Perfeito! Estou inebriado em suas palavras ditas, “despretensiosas”...
ResponderExcluirE, vou dizer-lhe: Acho totalmente viável a comparação fática da abordagem “nietzscheniana” como parâmetro circunstancial ou complemento de inúmeras” outras filosofias”, neste sentido, concepções filosóficas de outros autores.
Nietzsche é um dos que mais gosto de ler ! Acho que os "aforismos" dele são uma outra forma de observar o ângulo invertido das coisas e pessoas, originado-se assim um “status quo” da verdade primordial, difusa em ramificações da verdade relativizada conforme o livre arbítrio do pensar de cada ser humano. Talvez a morbidez das palavras dele pesem ao crivo dos leitores, pois que Nietzsche era um solitário convicto e detestava qualquer esfera de sociabilidade humana (e isto era observado na sua forma de expressar-se), mas, ainda sim, suas palavras desnudam-se no caos do homem perante a sua própria imagem íntima.
Beijos.
Oi Abraão, obrigada por sua colocação. Também tenho essa impressão de Nietzsche!
ResponderExcluir