Clara Maria C. Brum de Oliveira
Estudamos que o renascimento inaugurou uma nova era com a substituição gradual da antiga ciência que se baseava em longas argumentações lógicas pela observação dos fatos. E até podemos dizer que o desenvolvimento da astronomia teve grande papel nessa trajetória. Assim, as descobertas no campo da física e da astronomia conduziram à superação gradual do paradigma antigo que estava na base do sistema aristotélico e, por consequência propiciaram a separação entre o saber científico e o saber filosófico.
Após o breve período do renascimento, surgiu o que
os pensadores chamam de idade moderna, também conhecida como idade da razão.
Sem dúvida, esse momento histórico foi fertilizado por uma nova visão de mundo
que influenciou o pensamento científico.
Mas
por que usaram o termo moderno para o
período que se estende do séc. XVI ao XVIII?
No sentido etimológico, o termo moderno designa o
que é recente, a valorização do presente, do que é, possivelmente mitificando o
atual, por ser atual, desvalorizando o estado anterior. A palavra foi utilizada
por traduzir o sentido de algo novo, típico das épocas de transição de valores:
o pensamento novo dos modernos versus
as teses dos antigos. Por conseguinte, quando estudamos esse momento histórico
estamos tratando de uma época marcada pelo processo de ruptura com os valores
defendidos pela tradição medieval.
Assim, podemos considerar grandes pensadores tais
como Francis Bacon (1561-1626), Thomas Hobbes (1588-1679), René Descartes
(1596-1650), Blaise Pascal (1623-1662), John Locke (1632-1704), Nicolas de
Malebranche (1638-1715), Baruch Spinoza (1632-1677), Wilhelm Leibniz (1646-1716),
George Berkeley (1685-1753), David Hume (1711-1776), Immanuel Kant (1724-1804)
e tantos outros, cujas obras partiram em defesa das mudanças, do progresso nas
artes, nas letras e ciências.
Mas é importante observar que tais pensadores não se
denominavam modernos, uma vez que o
conceito “moderno” enquanto periodização histórica aparece nos estudos do
filósofo alemão, Hegel (1770-1831), quando elaborou uma história da filosofia
(MARCONDES, 1997, p. 139).
Esta etapa do pensamento filosófico e científico foi
marcadamente um momento de otimismo histórico e de fé na racionalidade e, neste
ponto, podemos enumerar algumas ideias que nos ajudam a compreender a atmosfera
da época (MARCONDES, 1997):
1. A razão é considerada a dimensão mais importante
do homem;
2. O conhecimento liberta o ser humano da ignorância
e da superstição;
3. O universo é ordenado e inteligível através da
matemática;
4. Somente a ciência nos conduz ao conhecimento
verdadeiro;
5. A observação e a experimentação são os meios
válidos para acessar a ordem da natureza;
6. O homem é o senhor soberano da natureza.
Esta valorização da razão nos conduziu à
problematização do tipo de racionalidade que se afigurou nesse contexto, ou
melhor, a partir desse contexto. O que se observa é que a razão sempre esteve
presente nas sociedades antigas e pensadores se esforçaram no sentido de
justificar suas crenças e objetivos a partir dela. Todavia um tipo de
racionalidade passa a ocupar lugar de destaque: a racionalidade instrumental que significa “a racionalidade dos meios
mais eficazes para alcançar o objetivo” (MENESES, 1998, p. 9). Neste aspecto,
importa buscar meios racionais e eficazes para fazer o que realmente interessa
– alcançar uma suposta sociedade moderna.
Jürgen Habermas (1929 -), na obra Técnica e Ciência como Ideologia,
publicada em 1968, observa que foi Max weber quem introduziu o conceito de
racionalidade com o objetivo de definir a atividade econômica capitalista.
Racionalização, diz Habermas, “significa, em primeiro lugar, a ampliação das
esferas sociais, que ficam submetidas aos critérios da decisão racional” (1994,
p. 45).
A sociedade se submete a uma racionalização
progressiva inerente ao processo de institucionalização do progresso científico
e técnico. Progresso que Habermas, ao citar a leitura de Herbert Marcuse sobre
o conceito desenvolvido por Weber, interpreta como uma forma determinada de
dominação política (HABERMAS, 1994, p. 46).
Por conseguinte, neste breve estudo sobre a história
do pensamento científico, podemos afirmar que o conhecimento e a informação não
se desvinculam de seu contexto social, mas ao contrário, este se afigura como
elemento condicionante (NUNES, 2007, p. 14).
A ciência no séc. XIX:
No séc. XIX a ciência amplia seu lugar com a
consolidação de algumas áreas de saber, dentre elas a biologia, a física e a
química. Intensificam-se os debates acadêmicos e as pesquisas a partir de uma
ótica em que a ciência é percebida como possibilidade de libertação humana
(BRAGA; GUERRA; REIS, 2008, p. 13). Foi
um momento marcado por muitas
descobertas e invenções que passaram a integrar a vida cotidiana. Nesse
sentido, autores observam que
Esse tempo de prosperidade, felicidade e fé nas
conquistas do conhecimento humano – e de suas aplicações ao cotidiano por meio
da tecnologia – bem poderia ser chamado de belle-époque
da ciência (BRAGA; GUERRA; REIS, 2008, p. 14).
Pode-se, então, dizer que a industrialização foi um
fenômeno que marcou sua época. Como todo fenômeno social, resultou de vários
fatores, dentre eles a nova organização do trabalho a partir da relação entre
ciência e técnica (tecnologia). E neste cenário, estudiosos da ciência
iniciaram suas investigações no sentido de uma base teórica para essa nova
realidade.
Mas foi no campo do ensino que a Alemanha ofertou
uma contribuição importante. O ensino germânico valorizou simultaneamente o
pensamento especulativo e o saber técnico, ou seja, teoria e prática. Com a
reforma educacional operada por Wilhelm Von Humboldt (1767-1835), na
Universidade de Berlim, ensino e pesquisa se fundiram como elementos
indissociáveis. Segundo Severino (2002, p. 11 apud MARTINS, 2010):
(...) numa sociedade organizada, espera-se que a
educação, como prática institucionalizada, contribua para integração dos homens
no tríplice universo das práticas que tecem a sua existência histórica
concreta: no universo do trabalho, âmbito da produção material e das relações
econômicas; no universo da sociabilidade, âmbito das relações políticas, e no
universo da cultura simbólica, âmbito da consciência pessoal, da subjetividade
e das relações intencionais.
Humboldt introduziu a pesquisa como
função inerente à universidade, concepção corroborada por pensadores tais como
Karl Jasper e Hegel, e que configurou uma mudança qualitativa na própria
concepção de universidade, impulsionada pelo advento da ciência moderna.
A época de Napoleão Bonaparte, por
exemplo, não ficou silente a esse processo, mas também operou uma reforma
educacional que resultou na universalização do ensino sob o comando do Estado.
Contribuindo, assim, para o surgimento de escolas e liceus em que a “ciência
passou a ter importância significativa na formação de crianças e jovens da
época” (BRAGA; GUERRA; REIS, 2008, p. 18). E com a ciência, a racionalização do espaço urbano, da vida
e suas novas exigências.
Por essa razão, teoria e prática
vivenciaram uma relação intensa nesse momento, porque os inventos demandavam
soluções teóricas para os problemas tecnológicos. Essa era fase de Nikolaus
Otto (1832-91), Gottlieb Daimler (1834-1900), Karl Benz (1844-1929), Werner Von
Siemens (1816-92), Louis Pasteur (1822-95), dentre outros. Na literatura, H. G.
Wells (1866-1946) e Jules Verne (1828-1905), enfocando o futuro que a ciência
poderia trazer à sociedade.
A educação acompanhou esse movimento,
porque é um fenômeno humano que encontra sentido na temporalidade, nas
mediações entre as pessoas e com os objetos de investigação. Nos dizeres de
Cezar Luís Seibt (2008, p. 91)
O ser humano não nasce programado e
pronto para exercer as funções culturais, os papéis e habilidades que seu tempo
e lugar exigem. Ele nasce dentro de um horizonte não totalmente determinado
pelos instintos, no espaço da cultura, portanto, no âmbito da possibilidade.
Precisa, por isso, passar por um processo de aquisição de conhecimentos e
habilidades que lhe permitam ser aquilo que se é, ou deve ser na sua cultura.
O desenvolvimento técnico
Nessa atmosfera profícua ao pensamento
científico, experimentou-se um vertiginoso aumento populacional que provocou
excedente de mão-de-obra. Este fenômeno foi importante para a consolidação do
novo modelo industrial. Braga, Guerra e Reis (2008, p. 21, grifo nosso)
sintetizam esta fase quando mencionam que:
O desenvolvimento técnico cristalizou
um enorme sentimento de esperança ao longo do século. As máquinas que invadiam
o cotidiano europeu apresentavam-se agora como a chave para a construção de um
futuro próspero, fazendo antever um tempo no qual os principais problemas que
afligiam a humanidade poderiam ser resolvidos pela ciência aplicada. O ideal de progresso cultivado pelos
intelectuais no século anterior ganhou as ruas. O homem havia se libertado das
limitações impostas pela natureza e pelas visões religiosas de outrora. A
razão tornava-o senhor de seu próprio destino. Parecia não haver limites para a
ciência e a tecnologia. Prometeu, enfim, fora desacorrentado.
A despeito desse grande entusiasmo, o processo de
industrialização inseriu máquinas em tarefas executadas anteriormente por
homens. Atrelada a esta situação, trabalhadores experimentavam condições
subumanas de trabalho e, como muitos estudiosos observam, a concepção
“universo-máquina” transformava homens em engrenagens desse novo sistema.
Um bom exemplo para esta situação foi a extração de
carvão que se tornou rentável à época, marcando a contradição entre um ideal de
progresso e realidade. Neste aspecto, cabe pontuar que os ideais de uma
sociedade igualitária cederam lugar aos movimentos socialistas e a ciência
encontrava-se no âmago desta contradição (BRAGA; GUERRA; REIS, 2008, p. 23).
A ciência crescia vertiginosamente e, ao mesmo
tempo, teóricos como Karl Marx (1818-1883) apontavam para as contradições e
para a necessidade de uma nova sociedade. Sem dúvida, o séc. XIX foi marcado
por um clima otimista em relação à ciência como lugar da verdade, sob o domínio
de uma racionalidade científica.
Todavia, tal euforia não afastou a inquietude de muitos pensadores
preocupados com as restrições e modificações impostas à sociedade. E reflexões
sobre a ciência[1]
aparecem já no séc. XIX, incorporando o que mais tarde foi denominado de
epistemologia.
A tradição positivista[2] representou o pensamento
que dominou a cultura européia a partir de 1840. E sob o aspecto político, esta
consolidou uma verdadeira revolução na vida social, cujo entusiasmo se
cristalizou em torno da concepção de progresso humano e social irrefreável.
Todavia, desequilíbrios sociais, lutas por novos mercados, a miséria do
proletariado e as diferentes formas de exploração de crianças e mulheres foram
observados pelo marxismo nesse horizonte positivista que os considerava
transitório e elimináveis.
O positivismo
Com Auguste
Comte[3]
(1798-1857) foi difundida uma nova escola de pensamento que se baseou numa
educação científica básica, separada de aspectos metafísicos: o positivismo. A tradição positivista
buscou os caminhos para um estudo da ciência adequado a esta fase que marcava
uma suposta superação de toda e qualquer especulação filosófica, sinalizando
assim seus limites no interior de um discurso com método e conceitos próprios.
Estabeleceu-se
assim um critério de cientificidade, com a pretensão de ser a base para todo
conhecimento verdadeiro. Neste horizonte, a ciência foi concebida “como uma
atividade autônoma que progride de forma linear e acumulativa, por si mesma
como um continuum de racionalidade”
(MORAES, 2008, p. 51, grifo da autora).
De um modo geral, o positivismo valorizou a ciência
como o lugar do conhecimento e, nesse sentido, considerou as ciências naturais
como o único método possível, inclusive para o estudo da sociedade. A
Sociologia passa a ser vista como uma ciência de fatos naturais, ou seja, a
ciência das relações humanas e sociais.
Conforme assevera Giovani Reale e Dario Antiseri
(1991, p. 297) “em linhas gerais, o positivismo (...) é caracterizado pela
confiança acrítica e, amiúde, leviana e superficial, na estabilidade e no
crescimento sem obstáculos da ciência”. E mais adiante acrescentam que “através
da observação, é possível estabelecer as leis dos fenômenos sociais, como a
física pode estabelecer as leis que guiam os fenômenos físicos” (p. 301).
Segundo Maria Célia M. Moraes (2008), baseando-se no pensamento de Dominique
Lecourt[4], a tradição positivista apresentou um
discurso contraditório, porque buscou fundamentos em pressupostos que podem ser
considerados metafísicos e ideológicos.
Vejamos algumas críticas:
A primeira
incongruência estaria no tratamento concedido à ciência como uma entidade
autônoma, capaz de configurar um único objeto (a Ciência). Na verdade, não
devemos reduzir as práticas científicas num todo homogêneo (p. 49). Nesse
sentido assevera,
A ideia positivista de uma “ciência da ciência” nada
mais é, dessa forma, do que uma pretensão metafísica que pretende anular essas
diferenças para encontrar uma suposta essência comum, essa sim, o objeto
adequado para essa ciência. Estamos diante de uma metafísica cientificista tão
pretensiosa e arrogante como a que a precedeu na história (p. 49-50).
A segunda
inconsistência está no fato de pretender estabelecer limites e critérios
rigorosos de cientificidade, eliminando abordagens especulativas e metafísicas
do processo de construção do saber científico. Sendo certo que buscaram
fundamento num modelo de ciência típico das ciências da natureza, em particular
a física. Ao impor esse modelo às demais ciências, promovem um cerceamento, sob
o império de um suposto critério de cientificidade. E, neste caso, como dar
conta das ciências humanas que por sua natureza “são formas de saber
irredutíveis a esse modelo”. Ressalta a autora que
No que diz respeito às ciências humanas, trata-se
de uma verdadeira armadilha, uma vez que sua existência e positividade, desse
ponto de vista, passam a depender de sua cientificidade, quando de fato, são
formas de saber irredutíveis a esse modelo. Não por incapacidade ou
incompetência dos que se dedicam à sua construção, mas porque são saberes
constituídos nessa irredutibilidade, porque se encontram colocadas em uma
configuração epistemológica extremamente complexa, em permanente relação com as
demais formas de saber (p. 50).
A terceira
crítica que o autor apresenta se refere à pretensão do discurso científico de
cunho positivista em apresentar uma suposta autonomia, ou seja, não deve contas
a ninguém e constrói um espaço próprio para o seu fundamento epistemológico, um
saber que avança num sentido linear (p. 51).
A quarta
crítica observa que a tradição positivista ignorou o aspecto institucional da
ciência com a proposta de uma ciência universal, uma comunidade científica
universal. Sem considerar a existência de grupos fechados, estilos de pesquisa
diferentes, obstáculos na transmissão dos resultados, bem como o fato de existir
critérios de ordem econômica e política – as relações com o poder. Portanto,
ignorar a dimensão institucional da ciência significa não enxergar o contexto
de sua justificação e aplicação (p. 52).
A quinta
observação focaliza o projeto do positivismo que percebe a ciência como a
possibilidade de organizar o trabalho científico. E mais. A organizar a
sociedade a partir da ótica da ciência. Isto significa dizer que a “organização
social, a liberdade política, [questões] de tecnologia, de ciência de todas essas
formas de racionalidade moderna” (p. 53) deveriam ser vista e planejadas pela
ciência.
Além de assegurar a ciência como método único e
mais importante, a tradição positivista exaltou o conhecimento científico como
a solução para todos os problemas humanos e sociais, considerando os fatos
empíricos como a base do conhecimento verdadeiro, numa concepção da cultura
concebida como construção humana.
A ciência no século XX
Como
observa Eric Hobsbawm[5] é
mais difícil falar de uma época que configura o nosso próprio tempo, porque
parte de nossas vidas experimentou com maior ou menor grau de consciência esse
momento histórico.
Em
linhas gerais, o séc. XX foi marcado por guerras, depressão econômica e por um
grande avanço científico e tecnológico com invenções tais como o automóvel, a
lâmpada, o telefone, o computador e posteriormente a internet.
Na
indústria, a linha de montagem e produção em massa e a invenção de inúmeros
eletrodomésticos. No âmbito da cultura, arte moderna (expressionismo, realismo
e cubismo), o desenvolvimento das tecnologias de mídia de massa: filmes, rádio
e televisão.
Na
Física, a teoria da relatividade, a mecânica quântica. Na Medicina, o
antibiótico, o contraceptivo e o advento da biologia molecular e da engenharia
genética. Isso se observarmos apenas a história da ciência a partir de seus
produtos, sem pretender mencionar aqui todas as inovações que provocaram novas
maneiras de ser e agir no mundo.
Apesar
desse vertiginoso avanço tecnológico e científico, este século experimentou um
olhar crítico em direção às concepções positivistas do século anterior,
fragilizando a percepção da ciência como único método possível.
Críticas
contundentes foram proferidas por pensadores tais como Wilhelm Dilthey
(1833-1911)[6] e Edmund
Husserl (1859-1938)[7], sobre a
neutralidade científica em relação aos interesses econômicos; sobre o intenso
desenvolvimento de tecnologias de guerra com grande poder destrutivo; sobre a
crença na dominação da natureza, tida como inesgotável e os consequentes
desequilíbrios ecológicos; sobre a crença num suposto avanço contínuo da
humanidade enfraquecida pela miséria, fome e pandemias.
Uma
das críticas mais interessantes foi elaborada por Husserl que observou em seus
estudos uma profunda crise nas ciências européias. Uma crise que não repousava
sobre a cientificidade[8] em
si, mas sobre o significado das ciências para a humanidade, ou seja, a pretensão
segundo a qual a ciência “é a única verdade válida e a ideia a ela ligada de
que o mundo descrito pelas ciências seria a verdadeira realidade” (REALE;
ANTISERI, 1991, p. 565). Giovani Reale e Dario Antiseri (1991, p. 565,) apontam
tal crítica quando citam Edmund Husserl:
Husserl
traça a história dessa pretensão e dessa ideia, a começar por Galileu e
Descartes. Mas, escreve ele, “na miséria da nossa vida, (...) essa ciência não
tem nada a nos dizer. Em princípio, ela exclui aqueles problemas que são os mais
candentes para o homem, o qual, em nossos tempos atormentados, sente-se à mercê
do destino: os problemas do sentido e do não-sentido da existência humana em
seu conjunto.”
...................................................................
Pergunta-se
Husserl, “o que tem a dizer essa ciência sobre a razão e sobre a não-razão, o
que tem ela a dizer sobre nós, homens, enquanto sujeitos dessa liberdade?
Obviamente, a mera ciência de fatos não tem nada a nos dizer a esse respeito:
ela, precisamente, abstrai de qualquer sujeito”.
A crítica de Dilthey também direcionada
ao positivismo focaliza a redução do homem à natureza no momento em que a
tradição positivista aplica à dimensão histórica a relação causal-determinista
típica das ciências naturais. E assim pretendeu realizar uma análise da razão
histórica. Em seu pensamento as ciências da natureza[9]
e as ciências do espírito se diferenciavam quanto ao seu objeto de
investigação. Nas ciências da natureza temos como objeto fenômenos externos ao
homem e nas ciências do espírito, o mundo das relações entre os indivíduos,
sendo o homem o seu próprio objeto.
Tanto o pensamento de Husserl, quanto o
Dilthey convergem para a problemática do fundamento das ciências do espírito,
ou seja, como estas podem ser delimitadas pelas ciências naturais se seus
objetos diferem, impossibilitando um saber histórico objetivo?
Hans-Georg Gadamer (1900-2002),
considerado um dos maiores pensadores da hermenêutica filosófica, observou, no
horizonte dessa crítica à tradição positivista, que a consciência histórica
caracteriza o homem contemporâneo, porque ele tem plena consciência da
historicidade do presente e da relatividade do saber. Entendeu por esse senso histórico, a possibilidade de
“superar o modo consequente, a ingenuidade natural que nos leva a julgar o
passado pelas medidas supostamente evidentes de nossa vida atual, adotando a
perspectiva de nossas instituições, de nossos valores e verdades adquiridas”
(2003, p. 18).
Ter uma consciência histórica para este
autor significa demonstrar uma posição reflexiva com relação a tudo o que é
ensinado pela tradição, ou seja, interpretar
(2003, p. 19). Interpretar exige um olhar para além do que é imediato, porque a
interpretação é influenciada por ideologias. E neste aspecto acrescenta que as
ciências humanas[10]
nos propõem um problema de cunho filosófico: investigar os fundamentos para uma
independência epistemológica em face das ciências da natureza, porque
reconhecemos “a impossibilidade de submetê-las ao ideal de conhecimento próprio
das ciências da natureza” (2003, p. 20). E mais adiante observa “a necessidade
é compreender o fenômeno histórico na sua singularidade” (2003, p. 23).
De acordo com o exposto até aqui,
podemos afirmar que a história do pensamento humano, em particular a história
da ciência e do conhecimento é marcada por momentos de passagens que denotam
que há uma dinâmica da cultura desvelando o ser humano na sua transcendência,
ou seja, um ser que vive o presente, compreende seu passado pelas aprendizagens
que assimilou, projeta o seu futuro (SEIBT, 2008). Nenhuma análise pode abordar
a produção material e cultural dos homens, sem considerar uma história das
ideias que observa o problema do conhecimento (MORAES,
2008, p. 54).
Referências:
ABBAGNANO,
Nicola. Dicionário de filosofia. São
Paulo: Mestre Jou, 1982.
ARANHA,
Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. 3. ed. São Paulo: Moderna,
2003.
BRAGA,
M.; GUERRA, A.; REIS, J.C. Breve
história da ciência moderna, volume 4: a belle-époque da ciência. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
HABERMAS, J. Técnica e ciência como ideologia. Lisboa: Edições 70, 1994.
HOBESBAWM,
E. Era do extremos: o breve século
XX – 1914-1991. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
JAPIASSÚ,
H.; MARCONDES, D. Dicionário básico de
filosofia. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
JOLIVET,
R. Vocabulário de filosofia. Rio de
Janeiro: Agir, 1975.
KANT,
Immanuel. Sobre a expressão corrente: isto pode ser correcto na teoria, mas
nada vale na prática. In: A paz perpétua
e outros opúsculos. Lisboa: Edições 70, 1990.
LAKATOS,
Eva M; MARCONI, Marina de A. Metodologia
científica. São Paulo: Atlas, 2000.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
MARTINS, Lígia. Ensino-pesquisa-extensão
como fundamento metodológico da construção do conhecimento na universidade.
Disponível
em:<http://www.franca.unesp.br/oep/Eixo%202%20-%20Tema%203.pdf>. Acesso
em: 23 abr 2011.
MORAES, Maria Célia M. Notas introdutórias
à epistemologia e à história das ciências. In:
HÜHNE, L. M. Filosofia e ciência. Rio de Janeiro: Uapê; SEAF, 2008.
REALE, Giovanni. História da filosofia. São Paulo: Paulus, 1990. V. 1.
[1]
Bernard Bo estudou as ciências formais, lógicas e matemáticas em 1837.
William Whewell estudou as ciências da natureza em 1840. Cf. MORAES, Maria
Célia M. Notas introdutórias à epistemologia e à história das ciências. In:
HÜHNE, L. M. Filosofia e ciência.
Rio de Janeiro: Uapê; SEAF, 2008. p. 44.
[2] Os representantes do positivismo: Auguste
Comte (1798-1857), na França; John Stuart Mill ( 1806-1873) e Herbert Spencer
(1820-1903), na Inglaterra; Jakob Moleschott (1822-1893) e Ernst Heckel
(1834-1919), na Alemanha; Roberto Ardigò (1828-1920), na Itália. Cf. REALE, G.;
ANTISERI, D. História da filosofia:
do romantismo até nossos dias. São Paulo: Paulus, 1991. p. 296.)
[3]
Este autor elaborou duas obras marcantes: Curso de filosofia positiva (1830) em que apresentou os fundamentos
de uma filosofia positiva e a obra Sistema
da política positiva (1851), em que apresenta uma análise da sociedade e a
proposta de uma religião ateísta da humanidade (BRAGA; GUERRA; REIS, 2008, p.
26)
[4]Dominique Lecourt (1944 - ) Filósofo francês estudioso de Filosofia da
Ciência, Ética, Bioética e Política.]
[5]
“Não é
possível escrever a história do século XX como a de qualquer outra época,
quando mais não fosse porque ninguém pode escrever sobre seu próprio tempo de
vida como pode (e deve fazer em relação a uma época conhecida apenas de fora,
em segunda ou terceira mão, por intermédio de fontes da época ou obras de
historiadores posteriores” - HOBESBAWM, E. Era
do extremos: o breve século XX – 1914-1991. São Paulo: Cia das Letras,
1995. p. 7.)
[6]
Dilthey – representante do historicismo
alemão, promoveu uma análise crítica da razão histórica no sentido de
fundamentar a validade das ciências do espírito, rompendo com o pensamento
positivista que reduziu o mundo histórico à natureza. Cf. REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: do romantismo
até nossos dias. São Paulo: Paulus, 1991.
[7]Husserl – Fundador do da Fenomenologia, corrente
de pensamento que teve grande influência no séc. XX. Atento ao desenvolvimento
das ciências positivas e também das ciências histórico-sociais, incentivou
debates sobre as concepções filosóficas do positivismo. Cf. REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: do romantismo até nossos dias. São Paulo:
Paulus, 1991.
[8]
Segundo
Danilo Marcondes e Hilton Japiassú: “Este termo evoca os critérios que nos
permitem definir o que constitui um conhecimento científico de fato e
distingui-lo claramente das outras formas de saber não-científicas. Dois são os
critérios mais correntes: o recurso à dedução racional e o recurso à
verificação experimental. Só há conhecimento científico a partir do momento em
que podemos repetir determinado fenômeno ou prever com certeza o aparecimento
desse fenômeno, sob determinadas condições”. Cf. JAPIASSÚ, H.; MARCONDES, D. Dicionário básico de filosofia. 4. ed.
Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
[9]
Para Dilthey, as ciências da natureza são aquelas que viam
conhecer causalmente os objetos externos; as ciências do espírito, as que visam
compreender o objeto, que é o homem. Sobre isto cf. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo:
Mestre Jou, 1982. p. 130.
[10]Segundo Régis Jolivet as ciências humanas eram entendidas à
época como “aquelas que, elaboradas por via de métodos positivos, dizem
respeito às diferentes atividades, individuais ou coletivas, do homem enquanto
ser inteligente e livre. Estas ciências englobam a psicologia, a sociologia, o
direito, a etnologia, a história etc.” JOLIVET, R. Vocabulário de filosofia. Rio de Janeiro: Agir, 1975. p. 42.
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