domingo, 3 de junho de 2012

A teoria do conhecimento



Clara Maria C. Brum de Oliveira


Sócrates — Eis o que me suscita dúvidas, sem nunca eu chegar a uma conclusão satisfatória: o que seja, propriamente, conhecimento. Será que poderíamos defini-lo? Como vos parece? Qual de nós falará primeiro? (PLATÃO. Teeteto, 145b-145a, 2001, p.38)


A epígrafe nos revela que a preocupação com o conhecimento não é fruto de um pensamento tardio, pois as necessidades humanas se tornaram uma força propulsora para a busca do saber. Sem dúvida, povos antigos desenvolveram a trigonometria, a hidráulica, a geometria, a mecânica, a lógica, a astronomia entre outros. Em particular, os gregos se preocuparam com o pensamento racional, desvinculando-o da narrativa mítica. É nesta fala de Sócrates à Teeteto que encontramos a investigação sobre o conhecimento, inaugurando o que podemos denominar de uma reflexão epistemológica acerca das possibilidades do conhecimento.

Segundo Johannes Hessen (1987, p. 21), não podemos afirmar que se configurou na Antiguidade e na Idade Média uma teoria do conhecimento propriamente dita, mas reflexões sobre o conhecimento diluídas nos estudos de vários pensadores. Como área específica da Filosofia, a Teoria do Conhecimento, surge no período moderno, Séc. XVII, na obra Ensaio acerca do entendimento humano (1690) de John Locke (1632-1704). Nesta obra, podemos observar o tratamento sistemático que Locke concedeu ao problema do conhecimento quando indagou sobre a origem, essência e certeza do conhecimento. Na Introdução de sua obra, nos diz:

Desde que o entendimento situa o homem acima de outros seres sensíveis, e dá-lhe toda vantagem e domínio que tem sobre eles, consiste certamente num tópico, ainda que, por sua nobreza, merecedor de nosso trabalho de investigá-lo.(...) Sendo, portanto o meu propósito investigar a  origem, a certeza e extensão do conhecimento humano (LOCKE, 1999, p. 29).

Neste caminho encontramos, também, George Berkeley (1685-1752) com a obra Tratado dos princípios do conhecimento humano (1710), Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716)  que refutou as ideias de John Locke na obra Novos ensaios sobre o entendimento humano (1765) e David Hume (1711-1776) com a obra Investigações sobre o entendimento humano (1748). Todavia, segundo Johannes Hessen (1987, p. 22), foram as reflexões realizadas por Immanuel Kant (1724-1804), na obra Crítica da Razão Pura (1781),  que o teriam colocado como o verdadeiro fundador de uma teoria do conhecimento como disciplina filosófica.

O que podemos entender por teoria do conhecimento?

Costuma-se definir teoria do conhecimento como uma disciplina filosófica que busca investigar as condições para o conhecimento verdadeiro. Segundo Abbagnano (1982) a teoria do conhecimento é denominada em língua italiana como gnosiologia e em alguns casos por epistemologia, termo que deriva do grego episteme e que significa ciência, conhecimento. Como preleciona Johannes Hessen (1987, p. 25), a teoria do conhecimento é:

(...) uma teoria, isto é, uma explicação ou interpretação filosófica do conhecimento humano. Mas, antes de filosofar sobre um objeto, é necessário examinar escrupulosamente esse objeto. Uma exata observação e descrição do objeto devem preceder qualquer explicação e interpretação. É necessário, pois, no nosso caso, observar com rigor e descrever com exatidão aquilo a que chamamos conhecimento, esse peculiar fenômeno da consciência.

Em síntese, pode-se dizer que uma teoria do conhecimento trabalha alguns temas importantes, a saber: 1. A possibilidade de o sujeito apreender realmente o objeto; 2. A origem do conhecimento humano na razão ou na experiência; 3. A essência do conhecimento; 4. Se há outras formas de conhecimento além do conhecimento racional; 5.o critério de verdade.

Como os pensadores modernos problematizaram o conhecimento?

O Séc. XVII inaugura o que os pensadores denominaram de modernidade ou período moderno. Neste conceito há a relação com o novo, com o progresso da ciência, das artes, da literatura e da filosofia. Segundo Danilo Marcondes (1997, p. 140), duas noções são importantes para esse momento: a ideia de progresso e a valorização do indivíduo, ou seja, “da subjetividade como o lugar da certeza e origem dos valores”.

Sob o ponto de vista histórico podemos enumerar alguns acontecimentos que fortaleceram a valorização da subjetividade tais como: o Humanismo Renascentista[1] do séc. XV;  a Reforma Protestante[2] do séc. XVI e a Revolução Científica[3] no séc. XVII e a redescoberta do Cepticismo[4]. Não menos importantes foram: a descoberta do Novo Mundo (1492); o desenvolvimento do mercantilismo e o surgimento e consolidação dos Estados nacionais. Movimentos que provocaram o nascimento de um conhecimento novo, voltado para o sujeito, em contradição com as concepções antigas e medievais que continuavam a vigorar.

Viveu-se nesta fase um momento turbulento de transição entre as ideias de uma escolástica medieval e uma nova visão de mundo, com uma crescente necessidade de se investigar o conhecimento a partir do sujeito cognoscente, reconhecendo-se que a tradição estava muito longe de alcançar um conhecimento verdadeiro. Momento de crise que se desvela nas palavras de Descartes (1596-1650), considerado o pai da filosofia moderna, na obra Discurso de Método:

Desde a infância nutri-me das letras, e, por me haver persuadido de que por meio delas se podia adquirir um conhecimento claro e seguro de tudo o que é útil à vida, sentia um imenso desejo de aprendê-las. Mas, logo que terminei todos esses anos de estudos (ao cabo dos quais se costuma ser recebido na classe dos doutos), mudei inteiramente de opinião. Achava-me com tantas dúvidas e indecisões, que me parecia não ter obtido outro proveito, ao procurar instruir-me, senão o de ter revelado cada vez mais a minha ignorância. E, no entanto, eu estudara numa das mais célebres escolas da Europa, onde pensava existir homens sábios, se é que existiam em algum lugar da Terra.


Nesta fase, duas correntes filosóficas ofereceram soluções diferentes para o problema acerca da origem do conhecimento: o racionalismo com Descartes e o empirismo inglês com  Francis Bacon (1561-1626), John Locke (1632-1704) e David Hume (1711-1776).

Quando investigamos as correntes do racionalismo e empirismo estamos nos ocupando de uma investigação acerca da origem do conhecimento e nossa pergunta de partida é: quando o sujeito cognoscente busca o conhecimento se apóia na experiência ou no pensamento?

Para iniciarmos uma investigação sobre esse problema vamos nos socorrer de um exemplo fornecido por Johannes Hessen (1987, p. 59) segundo o qual no juízo “o sol aquece a pedra”. Neste exemplo encontramos a dimensão da experiência e do pensamento. Se por um lado, podemos observar que o sol ilumina a pedra e, por isso, este objeto sensível fica aquecido e podemos senti-lo, nosso entendimento apresenta uma relação causal entre “sol”, “pedra” e “aquecimento” que nos permite formular um juízo. Estamos diante de duas concepções epistemológicas diferentes: a que considera a razão a única base do conhecimento e a que entende ser a experiência a origem do mesmo.


Racionalismo


Doutrina segundo a qual todo conhecimento certo provém de princípios irrecusáveis, a priori, evidentes, de que ela é a conseqüência necessária e, por si só, os sentidos não podem fornecer senão uma ideia confusa e provisória da verdade (LALANDE, 1993, p. 910).


Conforme esclarece Nicola Abbagnano (1982), o termo racionalismo expressa o sentido de uma confiança nos poderes da racionalidade para a determinação do conhecimento. E, assim, observa um dado curioso: o termo racionalismo foi usado pela primeira vez no séc. XVII para designar certa atitude no campo religioso segundo a qual tudo o que é resultado da razão seria bom e verdadeiro.

Immanuel Kant, segundo Abbagnano (1982), teria deslocado o termo racionalismo do sentido religioso para o aspecto filosófico de uma investigação sobre a origem do conhecimento. Todavia, foi Hegel quem caracterizou o termo racionalismo como uma corrente de pensamento que se inicia com Descartes, Espinoza e Leibniz, se opondo à doutrina do empirismo. Mais tarde essa oposição se fixou na história da filosofia.

Quando pensamos na corrente do racionalismo estamos observando uma posição epistemológica segundo a qual a razão se afigura a fonte principal do conhecimento (HESSEN, 1987, p. 60).

Nesta visão do conhecimento só podemos considerar como tal quando se traduz num juízo necessário e valido universalmente. Vejamos dos exemplos: “o todo é maior do que suas partes” e “todos os corpos são extensos”. Em ambos os exemplos temos juízos que são necessários e universalmente válidos. Nesse julgamento, nossa razão não tem como afirmar de maneira diferente e suas afirmações se encontram em todas as partes, são válidos universalmente. São afirmações que não decorrem da experiência, pois basta o pensamento.

Hessen (1987, p. 62) observa que nesta corrente os juízos formulados precisam apresentar necessidade lógica e validade universal e assim acreditaram que todo o conhecimento para ser válido, para ser verdadeiro, teria que apresentar as duas condições. Um pensamento que trabalha desvinculado de qualquer tipo de experiência sensível. Esse modelo racionalista teve sua origem no saber matemático cujo conhecimento é predominantemente conceitual e dedutivo. E, acrescenta que muitos dos adeptos da corrente do racionalismo procederam dessa área de saber.

Na história da teoria do conhecimento, podemos dizer que Platão nos ofereceu a forma mais antiga de racionalismo quando desenvolveu sua teoria das ideias trabalhada de maneira simbólica na Alegoria da Caverna. Nesta teoria observou que o mundo sensível é o lugar das mudanças e transformações, o que impossibilita a procura de um conhecimento verdadeiro.  Porque o que se modifica não alcançou a sua plenitude, é imperfeito.

Para este filósofo grego, os sentidos grosseiros jamais poderiam configurar a fonte de um saber verdadeiro, mas da mera opinião (doxa). Assim, operou uma inversão colocando o conhecimento verdadeiro no mundo das ideias ou formas puras. Este mundo supra-sensível é o lugar dos conceitos, das essências, lugar acessível à nossa consciência cognoscente.

Para ele, todo o mundo material, mundo sensível ou das sombras é um reflexo do mundo verdadeiro, mundo das ideias. Assim, para tornar possível o conhecimento verdadeiro lançou mão da concepção de anamnésis segundo a qual as almas enquanto tais contemplaram, antes de sua existência terrena, as ideias ou formas puras nesse lugar supra-sensível. Neste aspecto, o conhecimento passa a ser visto como reminiscência. Com essa explicação, Platão elabora uma teoria da contemplação das ideias ou formas puras que ficou conhecida, segundo Hessen (1987) como um racionalismo transcendente.

Mais tarde, na idade média, Santo Agostinho, influenciado por Plotino, neoplatônico, se apropria dessa concepção racionalista. Todavia, a ideia platônica e modificada e inserida no contexto do cristianismo medieval em que Deus passa a figurar com o fundante de todas as coisas. O mundo das ideias passa a ser o mundo das ideias criadas por Deus e revelada aos homens. O que nos permite caracterizar este pensamento como racionalismo teológico (HESSEN, 1987). Nos dizeres de Johannes Hessen (1987, p. 64-65):

O conhecimento tem lugar sendo o espírito humano iluminado por Deus. As verdades e os conceitos supremos são irradiados por Deus para o nosso espírito. (...) Santo Agostinho é da opinião que todo o saber, no sentido próprio e rigoroso, procede da razão humana ou da iluminação divina. A medula deste racionalismo é, deste modo, a teoria da iluminação divina.

Na Idade Moderna outra forma de racionalismo se afigurou nas filosofias de Descartes e Leibniz. Trata-se da teoria das ideias inatas segundo a qual são inatos os conceitos fundamentais do conhecimento. São conceitos originários da razão e que, portanto não procedem da experiência sensível. Segundo Hessen (1987) pode-se denominá-los de racionalismo imanente. Há ainda no séc. XIX um racionalismo lógico que difere dos modelos que o antecederam, pois se limita a investigar a origem lógica do pensamento. Consideram que o pensamento é a única fonte possível para o conhecimento, mas investigam seu rigor lógico, por isso foram denominados de racionalismo lógico.

Podemos dizer que o racionalismo foi importante enquanto valorizou o pensamento e seu papel na construção do conhecimento. Mas se equivocou ao afirmar que a razão seria a única fonte para o conhecimento verdadeiro e que através dela, por meio de pensamentos puramente conceituais, seria possível ingressar na esfera metafísica e saber mais do que é possível conhecer: a existência de Deus, a essência da alma, enfim, acessar o conhecimento absoluto.

É nesse sentido que nossos dicionários definem racionalismo como o conjunto de teorias filosóficas baseadas na pressuposição de que a investigação da verdade, conduzida pelo pensamento puro, ultrapassa em grande medida os dados imediatos oferecidos pelos sentidos e pela experiência. E, em teologia, a doutrina segundo a qual só se devem admitir dogmas religiosos baseados na racionalidade.


Empirismo

Do ponto de vista gnosiológico, o empirismo é a doutrina que, reconhecendo ou não a existência de princípios inatos no indivíduo, não admite que o espírito tenha leis próprias que difiram das coisas conhecidas e, por conseguinte, baseia o conhecimento do verdadeiro apenas sobre a experiência, fora da qual admite apenas definições ou hipóteses arbitrárias (LALANDE, 1993, p. 300).

Por empirismo entende-se o pensamento filosófico que parte da ideia segundo a qual a experiência é o critério da verdade e, nesse sentido, afirma que a verdade acessível aos homens não tem caráter absoluto e que deve ser posto a prova para eventuais modificações ou correções. O que o empirismo refuta é o poder da razão de nos ofertar um conhecimento verdadeiro. E, assim, toda e qualquer ideia deve se submeter à experiência (ABBAGNANO, 1982, p. 308-309).

Sob o ponto de vista histórico, podemos afirmar que o empirismo está associado a quatro ideias, a saber: Primeiramente, a negação do conhecimento inato porquanto não pode ser submetido à experiência e esta foi um das características mais marcantes do pensamento empírico, notadamente na obra de John Locke.

Em segundo lugar, a negação de um suposto mundo supra-sensível como o lugar as ideias inatas. Sendo certo dizer que o empirismo nos liga aos órgãos dos sentidos, ou seja, à evidência sensível como critério para medir o que pode ou não ser considerado como real.

Num terceiro momento, assume a característica de valorização do mundo material, ou seja, daquilo que está presente através da evidência sensível. Neste ponto, significa dizer que o que é verdade deve estar na realidade, no que poderá ser percebido. O que revela para esta corrente a importância dos fatos, dos dados e das condições de possibilidade para a verificação.

Por fim, o reconhecimento de que o ser humano é um ser limitado, falível quanto à busca pela verdade. Há aqui o reconhecimento das limitações humanas para alcançar o conhecimento verdadeiro, bem como a necessidade de uma investigação rigorosa para tal. Isso desvela a dúvida metódica para por a prova o conhecimento humano em todas as áreas. Evidencia-se neste ponto a crítica do empirismo ao conhecimento metafísico.  

Não podemos dizer que o empirismo esteve presente no mundo antigo e medieval, pois em tais épocas não havia a exigência de verificação, experimentação ou prova. Observa-se que a ciência antiga e medieval é marcadamente uma ciência especulativa. Todavia, alguns autores podem ter observado aspectos do empirismo tais como: a valorização do sensível com os estoicos[5], o interesse de Aristóteles pela natureza, bem como na Idade Média, Guilherme de Ockham que já demonstrava certo apelo à experiência sensível (ABBAGNANO, 1982, p. 310).

Segundo Abbagnano (1982, p. 310), tais características marcam o que se denominou de empirismo moderno que se inaugura no pensamento de John Locke.  Quando a tradição afirma que determinado pensamento aparece em um autor, quer dizer que encontramos nesse pensador um tratamento sistemático para o assunto e, é por isso que Locke, influenciado pela atmosfera do séc. XVII e XVIII, apresentou em suas investigações filosóficas um estudo sistemático sobre o conhecimento.

Para este pensador, não há ideias inatas, pois a alma é um papel em branco preenchido lentamente pela experiência sensível. Considerou que há uma experiência externa que decorre das sensações e outra interna que é fruto das reflexões. Como fruto das experiências, temos as ideias ou representações e, nesse sentido, o pensamento se limita a organizar as ideias advindas da experiência. Por isso, em seu modo de compreender o conhecimento, afirmou que não há nada nos conceitos que não se encontre na experiência. Todavia, este autor aceita, sob o ponto de vista lógico, a existência de ideias a priori, quando considera as verdades matemáticas como ideias universalmente válidas e independentes da experiência. O que para muitos autores fere a sua visão empirista (HESSEN, 1987, p. 71).

David Hume desenvolveu a concepção lockeana do conhecimento dividindo as ideias em impressões e ideias. Entendeu o termo impressões como as sensações advindas da experiência e ideias como representações da memória. Assim, formulou um princípio interessante: “todas as ideias procedem das impressões e não são nada mais do que cópias destas impressões” (HESSEN, 1987, p. 71). Com essa afirmação, Hume observa que todos os nossos conceitos podem ser reduzidos a alguma experiência sensível, o que desvela a tese do empirismos segundo a qual o sujeito cognoscente, para conhecer, precisa da experiência e somente dela. Embora, assim como Locke, também reconheça, sob o ponto de vista lógico, que certas relações expressas em proposições podem ser demonstradas independentemente da experiência. Por exemplo, diz-nos Hessen (1987) o teorema de Pitágoras, que  pode ser percebido apenas pelo pensamento.

Observa Abbagnano (1982, p. 310) que a corrente os empiristas “não incluem como se vê uma renúncia ao uso de instrumentos racionais ou lógicos (...). Não incluem sequer a renúncia a qualquer tipo de generalização, hipótese ou teorização” desde que possam se submetidas à verificação. Assevera que uma das formas mais contemporâneas de empirismo poderá ser vista no grupo de pensadores que formaram o Círculo de Viena[6], com a exigência de verificação, confirmação e prova.


A partir de tais características podemos dizer com Hessen (1987) que o empirismo se opõe ao racionalismo quando nega a possibilidade de a razão ser a única fonte do conhecimento. Na visão empirista, “não há qualquer patrimônio a priori da razão. A consciência cognoscente não tira os seus conteúdos da razão; tira-os exclusivamente da experiência” (1987, p. 68). Isto significa dizer que o ser humano é uma tábua rasa ou uma folha em branco a ser escrita pela experiência sensível que viabiliza o conhecimento de todos os conceitos. Um célebre exemplo usado pelos empiristas é o da criança nas suas percepções concretas marcando assim o processo do conhecer.

Começamos pequenos nas simples percepções e aos poucos formamos representações gerais e conceitos. Assim, justificam a tese segundo a qual a experiência é a única fonte do conhecimento. Nos dizeres de Hessen (1987, p. 69):

Enquanto que o racionalismo se deixa levar por uma idéia determinada, por uma ideia de conhecimento, o empirismo parte dos fatos concretos. Para justificar a sua posição, recorre à evolução do pensamento e do conhecimento humanos. Esta evolução prova, na opinião do empirismo, a alta importância da experiência na produção do conhecimento. A criança começa por ter percepções concretas. Com base nessas percepções chega, paulatinamente, a formar representações gerais e conceitos. Estes nascem, por conseguinte, organicamente da experiência. Não se encontra nada semelhante a esses conceitos que existem completos no espírito ou se formam com total independência da experiência. A experiência apresenta-se, pois, como a única fonte do conhecimento.

Mencionamos que os racionalistas em sua grande maioria procederam do modelo matemático. E, nessa lógica, podemos dizer que os empiristas foram influenciados pelas ciências naturais. Neste modelo, a experiência ocupa lugar central para se provar cada afirmação, cada observação. Ao adotar o método das ciências naturais, pensadores ao investigar as condições para o conhecimento, valorizaram a dimensão empírica. Assim,

Enquanto o filósofo de orientação matemática chega facilmente a considerar o pensamento como a fonte única do conhecimento, o filósofo que vem das ciências naturais tenderá para considerar a experiência como fonte e base de todo o conhecimento humano (HESSEN, 1987, p. 69-70).

Assim como os racionalistas, os empiristas também encontram desafios ao insistirem em suas teses. Se o conhecimento humano decorre exclusivamente da experiência, o conhecimento humano está fadado a ficar nos limites do mundo material. De qualquer forma, para a história do pensamento, a tese empirista ressaltou a importância do mundo dos fenômenos e da experiência, tão desprezado pelos racionalistas. Mas tais visões apresentam percepções diametralmente opostas e extremas. Assim, estamos diante de duas teses opostas, antagônicas o que não significa dizer que seja impossível pensar numa mediação (HESSEN, 1987).


O apriorismo como tentativa de mediação

Na investigação pela origem do conhecimento o pensamento de Immanuel Kant procurou uma mediação entre o racionalismo e o empirismo. Seu pensamento foi denominado de apriorismo. Em seu pensamento, o conhecimento desvela a existência de elementos a priori, ou seja, independentes da experiência sensível. Para este filósofo o princípio do seu apriorismo se desvela na seguinte e célebre frase: “Pensamentos sem conteúdo são vazios; intuições sem conceitos são cegas” (1994, p. 89).

Nesta colocação, Kant observa que o conhecimento acontece na relação entre uma dimensão empírica e outra racional. E segundo ele, a dimensão a priori do pensamento deriva unicamente da razão e não da experiência. A razão possui formas que ele denominou de  a priori e definiu esse termo como sendo a intuição do espaço e tempo. O que significa dizer que o sujeito cognoscente organiza em sua consciência os objetos sensíveis no espaço e no tempo. São essas duas dimensões que existem no sujeito cognoscente que organizam o conhecimento.

Ao reconhecer a existência de formas a priori do pensamento, Kant relacionou o conteúdo de nossas impressões com a intuição espaço-temporal, unindo a visão empírica e a racional, sem derivar uma da outra, mas mostrando que ambas atuam na construção do conhecimento. O tempo e o espaço são formas a priori presentes na consciência do sujeito cognoscente que ao receber as impressões sensíveis precisam organizá-las para o conhecimento. Para ilustrar, vejamos o que este pensador nos diz no “Prefácio da Segunda Edição” da Crítica da Razão Pura (1787, B XVI-XIX, grifo nosso):


Até hoje admitia-se que nosso conhecimento se devia regular pelos objetos; porém, todas as tentativas para descobrir a priori, mediante conceitos, algo que ampliasse o nosso conhecimento, malogravam-se com este pressuposto. Tentemos, pois, uma vez, experimentar se não se resolverão melhor as tarefas da metafísica, admitindo que os objetos se deveriam regular pelo nosso conhecimento. (...) Com efeito, a própria experiência é uma forma de conhecimento que exige concurso do entendimento, cuja regra devo pressupor em mim antes de me serem dados os objetos, por conseqüência, a priori, pelos quais têm de se regular necessariamente todos os objetos da experiência e com os quais devem concordar. No tocante aos objetos, na medida em que são simplesmente pensados pela razão – e necessariamente – mas sem poderem (pelo menos tais como a razão os pensa) ser dados na experiência, todas as tentativas para os pensar (pois têm que poder ser pensados) serão, consequentemente, uma magnífica pedra de toque daquilo que consideramos ser a mudança de método na maneira de pensar, a saber, que só conhecemos a priori das coisas o que nós mesmos nelas pomos.


Cumpre dizer que esse autor situou-se dentro da atmosfera intelectual que caracterizou o iluminismo alemão. Assim, o seu pensamento também foi denominado de criticismo, pois estabeleceu limites à razão humana quando afirmou que só podemos conhecer aquilo que nós mesmos criamos, constituindo, com esta afirmativa, uma nova forma de filosofar que nasceu no interior das mudanças estruturais que tipificaram a própria modernidade filosófica.

O próprio Kant mencionou que provocara uma revolução copernicana na Filosofia quando observou que é preciso estudar o próprio sujeito cognoscente antes de investigar os objetos do conhecimento. Assim, através de seu criticismo tentou superar o dogmatismo dos racionalistas e o cepticismo dos empiristas de seu tempo. Também influenciado pelo pensamento de Isaac Newton, Kant procurou investigar a possibilidade de construção de um conhecimento científico e, por isso, sua revolução copernicana assevera que o conhecimento não se rege pelos objetos, mas pelo sujeito do conhecimento e sua estrutura transcendental. Compreendendo por este termo a estrutura da sensibilidade e do intelecto presente em qualquer ser pensante. Uma estrutura cognitiva que viabiliza o conhecimento e que existe a priori nos sujeitos. São a priori porque pertencem ao sujeito e não aos objetos da experiência, são as condições que possibilitam a experiência.

Ele se preocupou com o nosso modo de conhecer, antes de investigar os objetos sensíveis, porque os objetos sensíveis são fenômenos no mundo e só podem ser percebidos, pelo sujeito que pensa se intuídos no tempo e no espaço. Relacionou a sensibilidade que nos oferece a experiência sensível com o entendimento que nos fornece o conceito - como as duas fontes do conhecimento. O que estava em discussão? A própria validade da razão para alcançar conhecimentos válidos. A possibilidade do conhecimento científico.


O conhecimento e a verdade

Resta-nos por investigar uma última questão: a do critério de verdade. Não é suficiente que os nossos juízos sejam verdadeiros; necessitamos da certeza de que o são. O que nos dá a certeza? Como é que conhecemos que um juízo é verdadeiro ou falso? Esta é a questão do critério da verdade (HESSEN, 1987, p.147).


O que é a verdade? Eis um assunto que sempre esteve nas mentes de muitos pensadores! Como definir critérios que legitimem os conhecimentos acerca da realidade? Os racionalistas acreditavam que a verdade decorre da razão, os empiristas, da experiência. Kant provocou uma mudança de paradigma quando afirmou os nossos limites para o conhecimento ao dizer que só conhecemos a priori das coisas o que nós mesmos nelas pomos. Então quem está com a verdade?

Para a corrente do dogmatismo não há esse problema, porque confiam na razão humana. É uma posição epistemológica interessante que não problematiza a relação entre sujeito e objeto. Mas acreditam que os objetos do conhecimento nos são dados de maneira absoluta (HESSEN, 1987, p. 37-38). Podemos encontrar um dogmatismo ético, teórico e religioso. Segundo Johannes Hessen (1987, p. 38), demonstram uma confiança ingênua na capacidade de conhecer. Segundo Marilena Chauí ( 2000, p. 116), o

Dogmatismo é uma atitude muito natural e muito espontânea que temos, desde muito crianças. É nossa crença de que o mundo existe e que é exatamente tal como o percebemos. Temos essa crença porque somos seres práticos, isto é, nos relacionamos com a realidade como um conjunto de coisas, fatos e pessoas que são úteis ou inúteis para nossa sobrevivência.

O contrário do dogmático é o cético que considera o conhecimento, no sentido de uma apreensão do real, impossível. Seu olhar observa a subjetividade e, nesse aspecto, entendem que a subjetividade influencia o conhecimento. Nessa discussão, Hessen (1987, p. 41, grifos do autor) observa que:

Do mesmo modo que o dogmatismo, também o cepticismo pode referir-se tanto à possibilidade do conhecimento em geral como à de um conhecimento determinado. No primeiro caso, estamos perante um cepticismo lógico. Também se lhe chama cepticismo absoluto ou radical. Quando o cepticismo se refere somente ao conhecimento metafísico, falamos de um cepticismo metafísico. No domínio dos valores distinguimos um cepticismo ético e um cepticismo religioso. Segundo o primeiro, é impossível o conhecimento moral; (...) As classes de cepticismo que acabamos de enumerar não são mais do que formas distintas desta questão.


A tese cética segundo a qual não há conhecimento, nos oferece uma contradição, pois no momento em que asseguram a impossibilidade de um conhecimento verdadeiro estão apresentando, também, uma concepção de verdade, ou seja, um juízo que se pretende verdadeiro.

O subjetivismo e o relativismo não são tão radicais assim, acreditam na possibilidade de uma verdade, mas sua validade é restrita. O que combatem é a possibilidade de um conhecimento universalmente válido. Hessen (1987, p. 46) afirma que a corrente do subjetivismo compreende a verdade como resultado de um sujeito que profere seus juízos. Podemos encontrar também um subjetivismo geral que não se confunde com uma ideia universal, mas pertencente a um grupo. O relativismo muito próximo do subjetivismo assevera que toda verdade é relativa, mas não a um sujeito ou grupo, mas a fatores externos, à influência do meio, do tempo, dos aspectos culturais que se configuram em fatores determinantes numa geração (HESSEN, 1987). Ambos incorrem na mesma contradição que o ceticismo, afirmam que a verdade é relativa, mas ao fazer isso se contradizem.

Ao lado de tais correntes de pensamento encontramos o pragmatismo que também se afasta do conceito de verdade tradicional. Esta corrente nos oferece um novo conceito de verdade relacionado ao sentido de útil e valioso. Tomam como ponto de partida a ideia de um homem prático, o que significa dizer que o entendimento humano está a serviço da vida prática. Neste aspecto,

O intelecto é dado ao homem, não para investigar e conhecer a verdade, mas sim para poder orientar-se na realidade. O conhecimento humano recebe o seu sentido e o seu valor deste seu destino prático. A sua verdade consiste na congruência dos pensamentos com os fins práticos do homem, em que aqueles resultem úteis e proveitosos para o comportamento prático deste (HESSEN, 1987, p. 50).

Esta posição do pragmatismo também incorre num erro imperdoável quando reduz o ser humano somente à dimensão prática da vida. Enfim, o tema exige uma reflexão mais profunda sobre o próprio ser humano e sua forma de perceber a realidade. E assim, permanecemos com as mesmas indagações iniciais: o que nos legitima a conhecer tanto e com tanta segurança? O que é a verdade? 

Observamos até aqui que cada pensador ofereceu maneiras diferentes de compreender o conhecimento. Cada um com os pés em seu mundo histórico-cultural, ou seja, no mundo da vida, configurando que cada época elabora sua leitura do mundo a partir de uma história, de uma linguagem e de valores partilhados (ZILLES, 1994). Assim, o sujeito pensante se envolve numa relação intencional com os fenômenos a partir de um contexto histórico social que não consegue eliminar, mas que antes colabora para a construção da sua subjetividade.


Referências:

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 2. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982.

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. 3. ed. São Paulo: Moderna, 2003.

CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000.

HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. Tradução António Correa. 7. ed. Coimbra: Arménio Amado, 1987.

KANT, I. Crítica da Razão Prática. Tradução de Manuela Pinto dos Santos; Alexandre Fradique Morujão. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1994.

KOLAK, Daniel; MARTIN, Raymond. Conhecimento. In: Sabedoria sem respostas: uma breve introdução à filosofia.  Tradução de Célia Teixeira. Lisboa: Tema s e Debates,  2004. Disponível em: < http://criticanarede.com/html/conhecimento.html>. Acesso em: 20 out. 2010.

LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

LOCKE, John. Ensaio sobre o entendimento humano. São Paulo: Abril Cultural, 1999. Coleção Os Pensadores.

MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

PLATÃO. Teeteto. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Pará: EDUSPA,  2001.

ZILLES, Urbano. Teoria do conhecimento. Porto Alegre: EDIPURS, 1994.




[1]Humanismo renascentista: importância das artes plásticas, retomada do ideal clássico Greco-romano em oposição à escolástica medieval, valorização do homem enquanto indivíduo, de sua livre iniciativa e de sua criatividade (MARCONDES, 1997, p 157).
[2]Reforma Protestante: crítica à autoridade institucional da Igreja, valorização da interpretação da mensagem divina nas Escrituras pelo indivíduo, ênfase na fé como experiência individual (MARCONDES, 1997, p 157).
[3]Revolução Científica: rejeição do modelo geocêntrico de cosmo e sua substituição pelo modelo heliocêntrico, noção de espaço infinito, visão da natureza como possuindo uma linguagem matemática, ciência ativa x ciência contemplativa antiga (MARCONDES, 1997, p 157).
[4]Redescoberta do Cepticismo: a oposição entre o antigo e o moderno suscita a problemática cética do conflito das teorias e da ausência de critério conclusivo para a decisão sobre a validade destas teorias (MARCONDES, 1997, p 157).

[5] Estoicos – “nos estóicos encontramos pela primeira vez a comparação da alma com um tábua por escrever”( (HESSEN, 1987, p.70).

[6] Círculo de Viena – O denominado Círculo de Viena foi uma escola filosófica constituída por um grupo de professores antimetafísicos da Universidade de Viena, que contribuíram para o surgimento do neopositivismo vienense. A cidade de Viena foi propícia ao surgimento do neopositivismo, porque nessa região se desenvolveu durante a segunda metade do séc. XIX, o liberalismo originado do Iluminismo, do empirismo e do utilitarismo. A Universidade de Viena se mantivera sob a influência católica e, portanto, ficou imune ao idealismo. Foi, portanto, a mentalidade escolástica que preparou a abordagem lógica das questões filosóficas. O círculo de Viena era formado por jovens doutores em Filosofia da ciência que organizavam colóquios semanais, dentre eles destacam-se: Hans Hahn, Otto Neurath, Olga Neurath, Félix Kaufmann e Carnap, que defendiam afastar a metafísica, a ética e a religião do âmbito científico (GIOVANNI; ANTISERI, 1991).

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