Clara Maria C. Brum de Oliveira
Sócrates — Eis o que me suscita dúvidas, sem nunca eu chegar a uma conclusão satisfatória: o que seja, propriamente, conhecimento. Será que poderíamos defini-lo? Como vos parece? Qual de nós falará primeiro? (PLATÃO. Teeteto, 145b-145a, 2001, p.38)
A epígrafe nos revela que a preocupação com o conhecimento não é
fruto de um pensamento tardio, pois as necessidades humanas se tornaram uma
força propulsora para a busca do saber. Sem dúvida, povos antigos desenvolveram
a trigonometria, a hidráulica, a geometria, a mecânica, a lógica, a astronomia
entre outros. Em particular, os gregos se preocuparam com o pensamento
racional, desvinculando-o da narrativa mítica. É nesta fala de Sócrates à
Teeteto que encontramos a investigação sobre o conhecimento, inaugurando o que
podemos denominar de uma reflexão epistemológica acerca das possibilidades do
conhecimento.
Segundo Johannes Hessen (1987, p. 21), não podemos afirmar que se
configurou na Antiguidade e na Idade Média uma teoria do conhecimento
propriamente dita, mas reflexões sobre o conhecimento diluídas nos estudos de
vários pensadores. Como área específica da Filosofia, a Teoria do Conhecimento,
surge no período moderno, Séc. XVII, na obra Ensaio acerca do entendimento humano (1690) de John Locke
(1632-1704). Nesta obra, podemos observar o tratamento sistemático que Locke
concedeu ao problema do conhecimento quando indagou sobre a origem, essência e
certeza do conhecimento. Na Introdução de sua obra, nos diz:
Desde que o entendimento situa o homem acima de outros seres
sensíveis, e dá-lhe toda vantagem e domínio que tem sobre eles, consiste
certamente num tópico, ainda que, por sua nobreza, merecedor de nosso trabalho
de investigá-lo.(...) Sendo, portanto o meu propósito investigar a origem, a certeza e extensão do conhecimento
humano (LOCKE, 1999, p. 29).
Neste caminho encontramos, também, George Berkeley (1685-1752) com
a obra Tratado dos princípios do
conhecimento humano (1710), Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716) que refutou as ideias de John Locke na obra Novos ensaios sobre o entendimento humano
(1765) e David Hume (1711-1776) com a obra Investigações
sobre o entendimento humano (1748). Todavia, segundo Johannes Hessen (1987,
p. 22), foram as reflexões realizadas por Immanuel Kant (1724-1804), na obra Crítica da Razão Pura (1781), que o teriam colocado como o verdadeiro
fundador de uma teoria do conhecimento como disciplina filosófica.
O que podemos
entender por teoria do conhecimento?
Costuma-se definir teoria do conhecimento como uma disciplina
filosófica que busca investigar as condições para o conhecimento verdadeiro.
Segundo Abbagnano (1982) a teoria do conhecimento é denominada em língua
italiana como gnosiologia e em alguns
casos por epistemologia, termo que
deriva do grego episteme e que
significa ciência, conhecimento. Como preleciona Johannes Hessen (1987, p. 25),
a teoria do conhecimento é:
(...) uma teoria, isto é, uma explicação ou interpretação
filosófica do conhecimento humano. Mas, antes de filosofar sobre um objeto, é
necessário examinar escrupulosamente esse objeto. Uma exata observação e
descrição do objeto devem preceder qualquer explicação e interpretação. É
necessário, pois, no nosso caso, observar com rigor e descrever com exatidão
aquilo a que chamamos conhecimento, esse peculiar fenômeno da consciência.
Em síntese, pode-se dizer que uma teoria do conhecimento trabalha
alguns temas importantes, a saber: 1. A possibilidade de o sujeito apreender
realmente o objeto; 2. A origem do conhecimento humano na razão ou na
experiência; 3. A essência do conhecimento; 4. Se há outras formas de
conhecimento além do conhecimento racional; 5.o critério de verdade.
Como os
pensadores modernos problematizaram o conhecimento?
O Séc. XVII inaugura o que os pensadores denominaram de
modernidade ou período moderno. Neste conceito há a relação com o novo, com o
progresso da ciência, das artes, da literatura e da filosofia. Segundo Danilo
Marcondes (1997, p. 140), duas noções são importantes para esse momento: a
ideia de progresso e a valorização do indivíduo, ou seja, “da subjetividade
como o lugar da certeza e origem dos valores”.
Sob o ponto de vista histórico podemos enumerar alguns
acontecimentos que fortaleceram a valorização da subjetividade tais como: o Humanismo
Renascentista[1]
do séc. XV; a Reforma Protestante[2] do
séc. XVI e a Revolução Científica[3] no
séc. XVII e a redescoberta do Cepticismo[4].
Não menos importantes foram: a descoberta do Novo Mundo (1492); o
desenvolvimento do mercantilismo e o surgimento e consolidação dos Estados
nacionais. Movimentos que provocaram o nascimento de um conhecimento novo,
voltado para o sujeito, em contradição com as concepções antigas e medievais
que continuavam a vigorar.
Viveu-se nesta fase um momento turbulento de transição entre as
ideias de uma escolástica medieval e uma nova visão de mundo, com uma crescente
necessidade de se investigar o conhecimento a partir do sujeito cognoscente,
reconhecendo-se que a tradição estava muito longe de alcançar um conhecimento
verdadeiro. Momento de crise que se desvela nas palavras de Descartes
(1596-1650), considerado o pai da filosofia moderna, na obra Discurso de Método:
Desde a infância nutri-me das letras, e, por me haver persuadido
de que por meio delas se podia adquirir um conhecimento claro e seguro de tudo
o que é útil à vida, sentia um imenso desejo de aprendê-las. Mas, logo que
terminei todos esses anos de estudos (ao cabo dos quais se costuma ser recebido
na classe dos doutos), mudei inteiramente de opinião. Achava-me com tantas
dúvidas e indecisões, que me parecia não ter obtido outro proveito, ao procurar
instruir-me, senão o de ter revelado cada vez mais a minha ignorância. E, no
entanto, eu estudara numa das mais célebres escolas da Europa, onde pensava
existir homens sábios, se é que existiam em algum lugar da Terra.
Nesta fase, duas correntes filosóficas ofereceram soluções
diferentes para o problema acerca da origem do conhecimento: o racionalismo com Descartes e o empirismo inglês com Francis Bacon (1561-1626), John Locke
(1632-1704) e David Hume (1711-1776).
Quando investigamos as correntes do racionalismo e empirismo
estamos nos ocupando de uma investigação acerca da origem do conhecimento e nossa pergunta de partida é: quando o sujeito cognoscente busca o
conhecimento se apóia na experiência ou no pensamento?
Para iniciarmos uma investigação sobre esse problema vamos nos
socorrer de um exemplo fornecido por Johannes Hessen (1987, p. 59) segundo o
qual no juízo “o sol aquece a pedra”. Neste exemplo encontramos a dimensão da
experiência e do pensamento. Se por um lado, podemos observar que o sol ilumina
a pedra e, por isso, este objeto sensível fica aquecido e podemos senti-lo,
nosso entendimento apresenta uma relação causal entre “sol”, “pedra” e
“aquecimento” que nos permite formular um juízo. Estamos diante de duas
concepções epistemológicas diferentes: a que considera a razão a única base do
conhecimento e a que entende ser a experiência a origem do mesmo.
Racionalismo
Doutrina segundo a qual todo conhecimento certo provém de
princípios irrecusáveis, a priori,
evidentes, de que ela é a conseqüência necessária e, por si só, os sentidos não
podem fornecer senão uma ideia confusa e provisória da verdade (LALANDE, 1993,
p. 910).
Conforme esclarece Nicola Abbagnano (1982), o termo racionalismo expressa o sentido de uma
confiança nos poderes da racionalidade para a determinação do conhecimento. E,
assim, observa um dado curioso: o termo racionalismo
foi usado pela primeira vez no séc. XVII para designar certa atitude no campo
religioso segundo a qual tudo o que é resultado da razão seria bom e
verdadeiro.
Immanuel Kant, segundo Abbagnano (1982), teria deslocado o termo racionalismo do sentido religioso para o
aspecto filosófico de uma investigação sobre a origem do conhecimento. Todavia,
foi Hegel quem caracterizou o termo racionalismo
como uma corrente de pensamento que se inicia com Descartes, Espinoza e
Leibniz, se opondo à doutrina do empirismo. Mais tarde essa oposição se fixou
na história da filosofia.
Quando pensamos na corrente do racionalismo estamos observando uma
posição epistemológica segundo a qual a razão se afigura a fonte principal do
conhecimento (HESSEN, 1987, p. 60).
Nesta visão do conhecimento só podemos considerar como tal quando
se traduz num juízo necessário e valido universalmente. Vejamos dos exemplos:
“o todo é maior do que suas partes” e “todos os corpos são extensos”. Em ambos
os exemplos temos juízos que são necessários e universalmente válidos. Nesse
julgamento, nossa razão não tem como afirmar de maneira diferente e suas
afirmações se encontram em todas as partes, são válidos universalmente. São
afirmações que não decorrem da experiência, pois basta o pensamento.
Hessen (1987, p. 62) observa que nesta corrente os juízos
formulados precisam apresentar necessidade lógica e validade universal e assim
acreditaram que todo o conhecimento para ser válido, para ser verdadeiro, teria
que apresentar as duas condições. Um pensamento que trabalha desvinculado de
qualquer tipo de experiência sensível. Esse modelo racionalista teve sua origem
no saber matemático cujo conhecimento é predominantemente conceitual e
dedutivo. E, acrescenta que muitos dos adeptos da corrente do racionalismo
procederam dessa área de saber.
Na história da teoria do conhecimento, podemos dizer que Platão
nos ofereceu a forma mais antiga de racionalismo quando desenvolveu sua teoria
das ideias trabalhada de maneira simbólica na Alegoria da Caverna. Nesta teoria observou que o mundo sensível é o
lugar das mudanças e transformações, o que impossibilita a procura de um
conhecimento verdadeiro. Porque o que se
modifica não alcançou a sua plenitude, é imperfeito.
Para este filósofo grego, os sentidos grosseiros jamais poderiam
configurar a fonte de um saber verdadeiro, mas da mera opinião (doxa). Assim,
operou uma inversão colocando o conhecimento verdadeiro no mundo das ideias ou
formas puras. Este mundo supra-sensível é o lugar dos conceitos, das essências,
lugar acessível à nossa consciência cognoscente.
Para ele, todo o mundo material, mundo sensível ou das sombras é
um reflexo do mundo verdadeiro, mundo das ideias. Assim, para tornar possível o
conhecimento verdadeiro lançou mão da concepção de anamnésis segundo a qual as almas enquanto tais contemplaram, antes
de sua existência terrena, as ideias ou formas puras nesse lugar
supra-sensível. Neste aspecto, o conhecimento passa a ser visto como
reminiscência. Com essa explicação, Platão elabora uma teoria da contemplação
das ideias ou formas puras que ficou conhecida, segundo Hessen (1987) como um
racionalismo transcendente.
Mais tarde, na idade média, Santo Agostinho, influenciado por
Plotino, neoplatônico, se apropria dessa concepção racionalista. Todavia, a
ideia platônica e modificada e inserida no contexto do cristianismo medieval em
que Deus passa a figurar com o fundante de todas as coisas. O mundo das ideias
passa a ser o mundo das ideias criadas por Deus e revelada aos homens. O que
nos permite caracterizar este pensamento como racionalismo teológico (HESSEN, 1987). Nos dizeres de Johannes Hessen (1987, p. 64-65):
O conhecimento tem lugar sendo o espírito humano iluminado por
Deus. As verdades e os conceitos supremos são irradiados por Deus para o nosso
espírito. (...) Santo Agostinho é da opinião que todo o saber, no sentido
próprio e rigoroso, procede da razão humana ou da iluminação divina. A medula
deste racionalismo é, deste modo, a teoria da iluminação divina.
Na Idade Moderna outra forma de racionalismo se afigurou nas
filosofias de Descartes e Leibniz. Trata-se da teoria das ideias inatas segundo
a qual são inatos os conceitos fundamentais do conhecimento. São conceitos
originários da razão e que, portanto não procedem da experiência sensível.
Segundo Hessen (1987) pode-se denominá-los de racionalismo imanente. Há ainda
no séc. XIX um racionalismo lógico que difere dos modelos que o antecederam,
pois se limita a investigar a origem lógica do pensamento. Consideram que o
pensamento é a única fonte possível para o conhecimento, mas investigam seu
rigor lógico, por isso foram denominados de racionalismo lógico.
Podemos dizer que o racionalismo foi importante enquanto valorizou
o pensamento e seu papel na construção do conhecimento. Mas se equivocou ao
afirmar que a razão seria a única fonte para o conhecimento verdadeiro e que
através dela, por meio de pensamentos puramente conceituais, seria possível
ingressar na esfera metafísica e saber mais do que é possível conhecer: a
existência de Deus, a essência da alma, enfim, acessar o conhecimento absoluto.
É nesse sentido que nossos dicionários definem racionalismo como o conjunto de teorias filosóficas baseadas na pressuposição
de que a investigação da verdade, conduzida pelo pensamento puro, ultrapassa em
grande medida os dados imediatos oferecidos pelos sentidos e pela experiência.
E, em teologia, a doutrina segundo a qual só se devem admitir dogmas religiosos
baseados na racionalidade.
Empirismo
Do ponto de vista gnosiológico, o empirismo é a doutrina que,
reconhecendo ou não a existência de princípios inatos no indivíduo, não admite
que o espírito tenha leis próprias que difiram das coisas conhecidas e, por
conseguinte, baseia o conhecimento do verdadeiro apenas sobre a experiência,
fora da qual admite apenas definições ou hipóteses arbitrárias (LALANDE, 1993,
p. 300).
Por empirismo entende-se
o pensamento filosófico que parte da ideia segundo a qual a experiência é o
critério da verdade e, nesse sentido, afirma que a verdade acessível aos homens
não tem caráter absoluto e que deve ser posto a prova para eventuais
modificações ou correções. O que o empirismo refuta é o poder da razão de nos
ofertar um conhecimento verdadeiro. E, assim, toda e qualquer ideia deve se
submeter à experiência (ABBAGNANO, 1982, p. 308-309).
Sob o ponto de vista histórico, podemos afirmar que o empirismo
está associado a quatro ideias, a saber: Primeiramente, a negação do
conhecimento inato porquanto não pode ser submetido à experiência e esta foi um
das características mais marcantes do pensamento empírico, notadamente na obra
de John Locke.
Em segundo lugar, a negação de um suposto mundo supra-sensível
como o lugar as ideias inatas. Sendo certo dizer que o empirismo nos liga aos
órgãos dos sentidos, ou seja, à evidência sensível como critério para medir o
que pode ou não ser considerado como real.
Num terceiro momento, assume a característica de valorização do
mundo material, ou seja, daquilo que está presente através da evidência
sensível. Neste ponto, significa dizer que o que é verdade deve estar na
realidade, no que poderá ser percebido. O que revela para esta corrente a
importância dos fatos, dos dados e das condições de possibilidade para a
verificação.
Por fim, o reconhecimento de que o ser humano é um ser limitado,
falível quanto à busca pela verdade. Há aqui o reconhecimento das limitações
humanas para alcançar o conhecimento verdadeiro, bem como a necessidade de uma
investigação rigorosa para tal. Isso desvela a dúvida metódica para por a prova
o conhecimento humano em todas as áreas. Evidencia-se neste ponto a crítica do
empirismo ao conhecimento metafísico.
Não podemos dizer que o empirismo esteve presente no mundo antigo
e medieval, pois em tais épocas não havia a exigência de verificação,
experimentação ou prova. Observa-se que a ciência antiga e medieval é
marcadamente uma ciência especulativa. Todavia, alguns autores podem ter
observado aspectos do empirismo tais como: a valorização do sensível com os estoicos[5], o
interesse de Aristóteles pela natureza, bem como na Idade Média, Guilherme de
Ockham que já demonstrava certo apelo à experiência sensível (ABBAGNANO, 1982,
p. 310).
Segundo Abbagnano (1982, p. 310), tais características marcam o
que se denominou de empirismo moderno que se inaugura no pensamento de John
Locke. Quando a tradição afirma que
determinado pensamento aparece em um autor, quer dizer que encontramos nesse
pensador um tratamento sistemático para o assunto e, é por isso que Locke,
influenciado pela atmosfera do séc. XVII e XVIII, apresentou em suas
investigações filosóficas um estudo sistemático sobre o conhecimento.
Para este pensador, não há ideias inatas, pois a alma é um papel
em branco preenchido lentamente pela experiência sensível. Considerou que há
uma experiência externa que decorre das sensações e outra interna que é fruto
das reflexões. Como fruto das experiências, temos as ideias ou representações
e, nesse sentido, o pensamento se limita a organizar as ideias advindas da
experiência. Por isso, em seu modo de compreender o conhecimento, afirmou que
não há nada nos conceitos que não se encontre na experiência. Todavia, este
autor aceita, sob o ponto de vista lógico, a existência de ideias a priori, quando considera as verdades
matemáticas como ideias universalmente válidas e independentes da experiência.
O que para muitos autores fere a sua visão empirista (HESSEN, 1987, p. 71).
David Hume desenvolveu a concepção lockeana do conhecimento
dividindo as ideias em impressões e ideias. Entendeu o termo impressões como as
sensações advindas da experiência e ideias como representações da memória.
Assim, formulou um princípio interessante: “todas as ideias procedem das
impressões e não são nada mais do que cópias destas impressões” (HESSEN, 1987,
p. 71). Com essa afirmação, Hume observa que todos os nossos conceitos podem
ser reduzidos a alguma experiência sensível, o que desvela a tese do empirismos
segundo a qual o sujeito cognoscente, para conhecer, precisa da experiência e
somente dela. Embora, assim como Locke, também reconheça, sob o ponto de vista
lógico, que certas relações expressas em proposições podem ser demonstradas
independentemente da experiência. Por exemplo, diz-nos Hessen (1987) o teorema
de Pitágoras, que pode ser percebido
apenas pelo pensamento.
Observa Abbagnano (1982, p. 310) que a corrente os empiristas “não
incluem como se vê uma renúncia ao uso de instrumentos racionais ou lógicos
(...). Não incluem sequer a renúncia a qualquer tipo de generalização, hipótese
ou teorização” desde que possam se submetidas à verificação. Assevera que uma
das formas mais contemporâneas de empirismo poderá ser vista no grupo de
pensadores que formaram o Círculo de Viena[6],
com a exigência de verificação, confirmação e prova.
A partir de tais características podemos dizer com Hessen (1987)
que o empirismo se opõe ao racionalismo quando nega a possibilidade de a razão
ser a única fonte do conhecimento. Na visão empirista, “não há qualquer
patrimônio a priori da razão. A
consciência cognoscente não tira os seus conteúdos da razão; tira-os
exclusivamente da experiência” (1987, p. 68). Isto significa dizer que o ser
humano é uma tábua rasa ou uma folha em branco a ser escrita pela experiência
sensível que viabiliza o conhecimento de todos os conceitos. Um célebre exemplo
usado pelos empiristas é o da criança nas suas percepções concretas marcando
assim o processo do conhecer.
Começamos pequenos nas simples percepções e aos poucos formamos
representações gerais e conceitos. Assim, justificam a tese segundo a qual a
experiência é a única fonte do conhecimento. Nos dizeres de Hessen (1987, p.
69):
Enquanto que o racionalismo se deixa levar por uma idéia
determinada, por uma ideia de conhecimento, o empirismo parte dos fatos
concretos. Para justificar a sua posição, recorre à evolução do pensamento e do
conhecimento humanos. Esta evolução prova, na opinião do empirismo, a alta
importância da experiência na produção do conhecimento. A criança começa por
ter percepções concretas. Com base nessas percepções chega, paulatinamente, a
formar representações gerais e conceitos. Estes nascem, por conseguinte,
organicamente da experiência. Não se encontra nada semelhante a esses conceitos
que existem completos no espírito ou se formam com total independência da
experiência. A experiência apresenta-se, pois, como a única fonte do
conhecimento.
Mencionamos que os racionalistas em sua grande maioria procederam
do modelo matemático. E, nessa lógica, podemos dizer que os empiristas foram
influenciados pelas ciências naturais. Neste modelo, a experiência ocupa lugar
central para se provar cada afirmação, cada observação. Ao adotar o método das
ciências naturais, pensadores ao investigar as condições para o conhecimento,
valorizaram a dimensão empírica. Assim,
Enquanto o filósofo de orientação matemática chega facilmente a
considerar o pensamento como a fonte única do conhecimento, o filósofo que vem
das ciências naturais tenderá para considerar a experiência como fonte e base
de todo o conhecimento humano (HESSEN, 1987, p. 69-70).
Assim como os racionalistas, os empiristas também encontram
desafios ao insistirem em suas teses. Se o conhecimento humano decorre
exclusivamente da experiência, o conhecimento humano está fadado a ficar nos
limites do mundo material. De qualquer forma, para a história do pensamento, a
tese empirista ressaltou a importância do mundo dos fenômenos e da experiência,
tão desprezado pelos racionalistas. Mas tais visões apresentam percepções
diametralmente opostas e extremas. Assim, estamos diante de duas teses opostas,
antagônicas o que não significa dizer que seja impossível pensar numa mediação
(HESSEN, 1987).
O apriorismo como tentativa de mediação
Na investigação pela origem do conhecimento o pensamento de
Immanuel Kant procurou uma mediação entre o racionalismo e o empirismo. Seu
pensamento foi denominado de apriorismo.
Em seu pensamento, o conhecimento desvela a existência de elementos a priori, ou seja, independentes da
experiência sensível. Para este filósofo o princípio do seu apriorismo se desvela na seguinte e
célebre frase: “Pensamentos sem conteúdo são vazios; intuições sem conceitos
são cegas” (1994, p. 89).
Nesta colocação, Kant observa que o conhecimento acontece na
relação entre uma dimensão empírica e outra racional. E segundo ele, a dimensão
a priori do pensamento deriva
unicamente da razão e não da experiência. A razão possui formas que ele
denominou de a priori e definiu esse termo como sendo a intuição do espaço e
tempo. O que significa dizer que o sujeito cognoscente organiza em sua
consciência os objetos sensíveis no espaço e no tempo. São essas duas dimensões
que existem no sujeito cognoscente que organizam o conhecimento.
Ao reconhecer a existência de formas a priori do pensamento, Kant relacionou o conteúdo de nossas
impressões com a intuição espaço-temporal, unindo a visão empírica e a
racional, sem derivar uma da outra, mas mostrando que ambas atuam na construção
do conhecimento. O tempo e o espaço são formas a priori presentes na consciência do sujeito cognoscente que ao
receber as impressões sensíveis precisam organizá-las para o conhecimento. Para
ilustrar, vejamos o que este pensador nos diz no “Prefácio da Segunda Edição”
da Crítica da Razão Pura (1787, B
XVI-XIX, grifo nosso):
Até hoje admitia-se que nosso conhecimento se devia regular pelos
objetos; porém, todas as tentativas para descobrir a priori, mediante conceitos, algo que ampliasse o nosso conhecimento,
malogravam-se com este pressuposto. Tentemos, pois, uma vez, experimentar se
não se resolverão melhor as tarefas da metafísica, admitindo que os objetos se
deveriam regular pelo nosso conhecimento. (...) Com efeito, a própria
experiência é uma forma de conhecimento que exige concurso do entendimento,
cuja regra devo pressupor em mim antes de me serem dados os objetos, por
conseqüência, a priori, pelos quais têm de se regular necessariamente todos os
objetos da experiência e com os quais devem concordar. No tocante aos objetos,
na medida em que são simplesmente pensados pela razão – e necessariamente – mas
sem poderem (pelo menos tais como a razão os pensa) ser dados na experiência,
todas as tentativas para os pensar (pois têm que poder ser pensados) serão,
consequentemente, uma magnífica pedra de toque daquilo que consideramos ser a
mudança de método na maneira de pensar, a
saber, que só conhecemos a priori das coisas o que nós mesmos nelas pomos.
Cumpre dizer que esse autor situou-se
dentro da atmosfera intelectual que caracterizou o iluminismo alemão. Assim, o
seu pensamento também foi denominado de criticismo,
pois estabeleceu limites à razão humana quando afirmou que só podemos conhecer
aquilo que nós mesmos criamos, constituindo, com esta afirmativa, uma nova
forma de filosofar que nasceu no interior das mudanças estruturais que
tipificaram a própria modernidade filosófica.
O próprio Kant mencionou que provocara
uma revolução copernicana na Filosofia quando observou que é preciso estudar o
próprio sujeito cognoscente antes de investigar os objetos do conhecimento.
Assim, através de seu criticismo tentou superar o dogmatismo dos racionalistas
e o cepticismo dos empiristas de seu tempo. Também influenciado pelo pensamento
de Isaac Newton, Kant procurou investigar a possibilidade de construção de um
conhecimento científico e, por isso, sua revolução copernicana assevera que o
conhecimento não se rege pelos objetos, mas pelo sujeito do conhecimento e sua
estrutura transcendental.
Compreendendo por este termo a estrutura da sensibilidade e do intelecto
presente em qualquer ser pensante. Uma estrutura cognitiva que viabiliza o
conhecimento e que existe a priori nos
sujeitos. São a priori porque
pertencem ao sujeito e não aos objetos da experiência, são as condições que
possibilitam a experiência.
Ele se preocupou com o nosso modo de
conhecer, antes de investigar os objetos sensíveis, porque os objetos sensíveis
são fenômenos no mundo e só podem ser percebidos, pelo sujeito que pensa se
intuídos no tempo e no espaço. Relacionou a sensibilidade que nos oferece a
experiência sensível com o entendimento que nos fornece o conceito - como as
duas fontes do conhecimento. O que estava em discussão? A própria validade da
razão para alcançar conhecimentos válidos. A possibilidade do conhecimento
científico.
O
conhecimento e a verdade
Resta-nos por investigar uma última questão: a do critério de
verdade. Não é suficiente que os nossos juízos sejam verdadeiros; necessitamos
da certeza de que o são. O que nos dá a certeza? Como é que conhecemos que um
juízo é verdadeiro ou falso? Esta é a questão do critério da verdade (HESSEN,
1987, p.147).
O que é a verdade? Eis um assunto que sempre esteve nas mentes de
muitos pensadores! Como definir critérios que legitimem os conhecimentos acerca
da realidade? Os racionalistas acreditavam que a verdade decorre da razão, os
empiristas, da experiência. Kant provocou uma mudança de paradigma quando
afirmou os nossos limites para o conhecimento ao dizer que só conhecemos a priori das coisas o que nós mesmos nelas pomos.
Então quem está com a verdade?
Para a corrente do dogmatismo não há esse problema, porque confiam
na razão humana. É uma posição epistemológica interessante que não problematiza
a relação entre sujeito e objeto. Mas acreditam que os objetos do conhecimento
nos são dados de maneira absoluta (HESSEN, 1987, p. 37-38). Podemos encontrar
um dogmatismo ético, teórico e religioso. Segundo Johannes Hessen (1987, p.
38), demonstram uma confiança ingênua na capacidade de conhecer. Segundo
Marilena Chauí ( 2000, p. 116), o
Dogmatismo é uma atitude muito natural e muito espontânea que
temos, desde
muito crianças. É nossa crença de que o mundo existe e que é exatamente tal como
o percebemos. Temos essa crença porque somos seres práticos, isto é, nos relacionamos
com a realidade como um conjunto de coisas, fatos e pessoas que são
úteis ou inúteis para nossa sobrevivência.
O contrário do dogmático é o cético que considera o conhecimento,
no sentido de uma apreensão do real, impossível. Seu olhar observa a subjetividade
e, nesse aspecto, entendem que a subjetividade influencia o conhecimento. Nessa
discussão, Hessen (1987, p. 41, grifos do autor) observa que:
Do mesmo modo que o dogmatismo, também o cepticismo pode
referir-se tanto à possibilidade do conhecimento em geral como à de um
conhecimento determinado. No primeiro caso, estamos perante um cepticismo lógico. Também se lhe chama cepticismo absoluto ou radical. Quando o cepticismo se refere somente ao conhecimento metafísico, falamos de um cepticismo metafísico. No domínio dos valores
distinguimos um cepticismo ético e um
cepticismo religioso. Segundo o
primeiro, é impossível o conhecimento moral; (...) As classes de cepticismo que
acabamos de enumerar não são mais do que formas distintas desta questão.
A tese cética segundo a qual não há conhecimento, nos oferece uma
contradição, pois no momento em que asseguram a impossibilidade de um
conhecimento verdadeiro estão apresentando, também, uma concepção de verdade,
ou seja, um juízo que se pretende verdadeiro.
O subjetivismo e o relativismo não são tão radicais assim,
acreditam na possibilidade de uma verdade, mas sua validade é restrita. O que
combatem é a possibilidade de um conhecimento universalmente válido. Hessen
(1987, p. 46) afirma que a corrente do subjetivismo compreende a verdade como
resultado de um sujeito que profere seus juízos. Podemos encontrar também um
subjetivismo geral que não se confunde com uma ideia universal, mas pertencente
a um grupo. O relativismo muito próximo do subjetivismo assevera que toda
verdade é relativa, mas não a um sujeito ou grupo, mas a fatores externos, à
influência do meio, do tempo, dos aspectos culturais que se configuram em
fatores determinantes numa geração (HESSEN, 1987). Ambos incorrem na mesma
contradição que o ceticismo, afirmam que a verdade é relativa, mas ao fazer
isso se contradizem.
Ao lado de tais correntes de pensamento encontramos o pragmatismo
que também se afasta do conceito de verdade tradicional. Esta corrente nos
oferece um novo conceito de verdade relacionado ao sentido de útil e valioso.
Tomam como ponto de partida a ideia de um homem prático, o que significa dizer
que o entendimento humano está a serviço da vida prática. Neste aspecto,
O intelecto é dado ao homem, não para investigar e conhecer a
verdade, mas sim para poder orientar-se na realidade. O conhecimento humano
recebe o seu sentido e o seu valor deste seu destino prático. A sua verdade
consiste na congruência dos pensamentos com os fins práticos do homem, em que
aqueles resultem úteis e proveitosos para o comportamento prático deste
(HESSEN, 1987, p. 50).
Esta posição do pragmatismo também incorre num erro imperdoável
quando reduz o ser humano somente à dimensão prática da vida. Enfim, o tema
exige uma reflexão mais profunda sobre o próprio ser humano e sua forma de
perceber a realidade. E assim, permanecemos com as mesmas indagações iniciais:
o que nos legitima a conhecer tanto e com tanta segurança? O que é a
verdade?
Observamos até aqui que cada pensador ofereceu maneiras diferentes
de compreender o conhecimento. Cada um com os pés em seu mundo
histórico-cultural, ou seja, no mundo da vida, configurando que cada época
elabora sua leitura do mundo a partir de uma história, de uma linguagem e de
valores partilhados (ZILLES, 1994). Assim, o sujeito pensante se envolve numa
relação intencional com os fenômenos a partir de um contexto histórico social
que não consegue eliminar, mas que antes colabora para a construção da sua
subjetividade.
Referências:
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário
de filosofia. 2. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982.
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. 3.
ed. São Paulo: Moderna, 2003.
CHAUÍ, Marilena. Convite à
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ZILLES, Urbano. Teoria do conhecimento. Porto Alegre:
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[1]Humanismo renascentista: importância das artes plásticas, retomada do
ideal clássico Greco-romano em oposição à escolástica medieval, valorização do
homem enquanto indivíduo, de sua livre iniciativa e de sua criatividade
(MARCONDES, 1997, p 157).
[2]Reforma Protestante: crítica à autoridade institucional da Igreja,
valorização da interpretação da mensagem divina nas Escrituras pelo indivíduo,
ênfase na fé como experiência individual (MARCONDES, 1997, p 157).
[3]Revolução Científica: rejeição
do modelo geocêntrico de cosmo e sua substituição pelo modelo heliocêntrico,
noção de espaço infinito, visão da natureza como possuindo uma linguagem matemática, ciência ativa x
ciência contemplativa antiga (MARCONDES, 1997, p 157).
[4]Redescoberta do Cepticismo: a
oposição entre o antigo e o moderno suscita a problemática cética do conflito
das teorias e da ausência de critério conclusivo para a decisão sobre a
validade destas teorias (MARCONDES, 1997, p 157).
[5]
Estoicos – “nos estóicos encontramos pela primeira vez a comparação da
alma com um tábua por escrever”( (HESSEN, 1987, p.70).
[6]
Círculo de Viena – O denominado Círculo de Viena foi uma escola
filosófica constituída por um grupo de professores antimetafísicos da
Universidade de Viena, que contribuíram para o surgimento do neopositivismo
vienense. A cidade de Viena foi propícia ao surgimento do neopositivismo,
porque nessa região se desenvolveu durante a segunda metade do séc. XIX, o
liberalismo originado do Iluminismo, do empirismo e do utilitarismo. A
Universidade de Viena se mantivera sob a influência católica e, portanto, ficou
imune ao idealismo. Foi, portanto, a mentalidade escolástica que preparou a
abordagem lógica das questões filosóficas. O círculo de Viena era formado por
jovens doutores em Filosofia da ciência que organizavam colóquios semanais,
dentre eles destacam-se: Hans Hahn, Otto Neurath, Olga Neurath, Félix Kaufmann
e Carnap, que defendiam afastar a metafísica, a ética e a religião do âmbito
científico (GIOVANNI; ANTISERI, 1991).
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