domingo, 3 de junho de 2012

Tipos de conhecimento



Clara Maria C. Brum de Oliveira


Sócrates: (...) com a mesma razão ainda podemos afirmar que a opinião certa na vida prática não é nem pior nem menos útil do que a ciência, e que um homem de opinião certa não é inferior a um que possui a ciência.
(Ménon, Platão)


Estudamos que o conhecimento é objeto de investigação há muito tempo. Os gregos já problematizavam o conhecimento quando o distinguiam da opinião (doxa). O próprio Sócrates, personagem importante nos diálogos platônicos, Ménon e Teeteto, menciona que ambos são bem distintos. O fato é que no mundo da vida há diferentes maneiras de perceber a realidade, há níveis diferenciados de conhecimento.

Temos o conhecimento do senso comum, também denominado como conhecimento empírico ou  ordinário ou simplesmente opinião (doxa). Encontramos também o conhecimento científico, o filosófico e o religioso.

Alguns estudiosos afirmam que só podemos ensinar e aprender partindo das idéias do senso comum. Mas o que podemos entender pela expressão senso comum?


O conhecimento comum

Durante muito tempo, os seres humanos viveram mergulhados em crenças que pretendiam dar sentido às relações sociais. Podemos buscar inúmeros exemplos desde a peculiar narrativa sobre a origem de Helena de Tróia, filha de Zeus com uma mortal, até a lenda brasileira do Boto-rosa[1]. E mais. Durante a Idade Média, por exemplo, acreditava-se em feiticeiras, lobisomens e amuletos. Não é por acaso que nossos filmes de vampiros trazem o imaginário medieval. Alguns historiadores contam que quando uma dama morria, no instante em que parava de respirar os criados corriam pela mansão senhorial esvaziando todos os recipientes com água para evitar que sua alma se afogasse e antes do funeral o corpo era cuidadosamente vigiado a fim de evitar que algum animal doméstico se aproximasse, transformando-o em vampiro. Nada, absolutamente nada na cristandade medieval legitimava tais rituais, mas na dúvida as precauções eram tomadas (MANCHESTER, 2004, p. 98).

O fato é que por milhares de anos, pessoas viveram e ainda vivem sem conhecer o que chamamos de ciência, por isso não seria prudente depreciar o saber comum que nasce das experiências cotidianas e que nem sempre estará atrelado à idéia de falsidade ou erro.

Vamos começar pela definição: como podemos definir senso comum? 

Há muitas definições possíveis, mas de um modo geral podemos dizer que é aquilo que assimilamos por tradição. São ideias que nos ajudam a interpretar a vida e a julgar certas situações. Estamos, por conseguinte, mergulhados no senso comum que geralmente se apresenta como um saber que é ingênuo, fragmentado e por vezes conservador (ARANHA; MARTINS, 2003).

Rubem Alves nos oferece uma interessante definição para senso comum. Leia o texto abaixo e, em seguida, realiza a atividade proposta.

O que é senso comum?
Esta expressão não foi inventada pelas pessoas de senso comum. Creio que elas nunca se preocuparam em se definir. (...) a expressão “senso comum” foi criada por pessoas que se julgam acima do senso comum, como uma forma de se diferenciarem das pessoas que, segundo seu critério, são intelectualmente inferiores. Quando um   cientista se refere ao senso comum, ele está, obviamente, pensando nas pessoas que não passaram por um treinamento científico. Vamos pensar sobre uma destas pessoas.
 Ela é uma dona-de-casa. Pega o dinheiro e vai à feira. Não se formou em coisa alguma. Quando tem de preencher formulários, diante da informação “profissão” ela coloca “prendas domésticas” ou “do lar”. Uma pessoa comum como milhares de outras. Vamos pensar em como ela funciona, lá na feira, de barraca em barraca. Seu senso comum trabalha com problemas econômicos: como adequar os recursos de que dispõe, em dinheiro, às necessidades de sua família, em comida. E para isso ela tem de processar uma série de informações. Os alimentos oferecidos são classificados em indispensáveis, desejáveis e supérfluos. Os preços são comparados.
A estação dos produtos é verificada: produtos fora de estação são mais caros. Seu senso econômico, por sua vez, está acoplado a outras ciências. Ciências humanas, por exemplo. Ela sabe que alimentos não são apenas alimentos. Sem nunca haver lido Veblen ou Lévi-Strauss, ela sabe do valor simbólico dos alimentos. Uma refeição é uma dádiva da dona-de-casa, um presente. Com a refeição ela diz algo. Oferecer chouriço para um marido de religião adventista, ou feijoada para uma sogra que tem úlceras, é romper claramente com uma política de coexistência pacífica.

A escolha de alimentos, assim, não é regulada apenas por fatores econômicos, mas por fatores simbólicos, sociais e políticos. Além disto, a economia e a política devem fazer lugar para o estético: o gostoso, o cheiroso, o bonito. E para o dietético. Assim, ela junta o bom para comprar, com o bom para dar, com o bom para ver, cheirar e comer, com o bom para viver. É senso comum? É. A dona-de-casa não trabalha com aqueles instrumentos que a ciência definiu como científicos. É comportamento ingênuo, simplista, pouco inteligente? De forma alguma. Sem o saber, ela se comporta como uma pianista, em oposição ao especialista em trinados.

(...) O que é senso comum? Prefiro não definir. Talvez simplesmente dizer que senso comum é aquilo que não é ciência e isto inclui todas as receitas para o dia-a-dia, bem como os ideais e esperanças que constituem a capa do livro de receitas. E a ciência? Não é uma forma de conhecimento diferente do senso comum. Não é um novo órgão. Apenas uma especialização de certos órgãos e um controle disciplinado do seu uso. Você é capaz de visualizar imagens?  Então pense no senso comum como as pessoas comuns. E a ciência? Tome esta pessoa comum e hipertrofie um dos seus órgãos, atrofiando os outros. Olhos enormes, nariz e ouvidos diminutos. A ciência é uma metamorfose do senso comum. Sem ele, ela não pode existir. E essa é a razão por que não existe nela nada de misterioso ou extraordinário.
[Alves, Rubem. Filosofia da ciência. Introdução ao jogo e a suas regras. São Paulo: Loyola, 2007, p. 12-14.]



Senso Comum

Podemos pensá-lo sob o ponto de vista do conhecimento que é partilhado com várias pessoas, ou ainda relacioná-lo a objetos comuns, objetos universais. O conhecimento comum ou ordinário é, portanto um conhecimento empírico, fragmentado, particular porque restrito e subjetivo (ARANHA; MARTINS, 2003). Quando observamos que o senso comum é um saber empírico, deve-se observar este termo no sentido de um conhecimento que decorre da experiência espontânea que acontece no mundo da vida, sem um planejamento (MORAIS, 2007).

Na verdade, estamos falando de um modo de ser que experimentamos na vida cotidiana enquanto pessoas comuns. E é nesse sentido que precisamos ressaltar que senso comum não se confunde com bom senso, uma vez que este desvela certo refinamento das ideias, ou seja,  uma elaboração mais coerente do saber comum.

Descartes, por exemplo, filósofo, físico e matemático francês, autor da frase: penso, logo existo, apontou uma questão interessante sobre o bom senso quando certificou que as pessoas acreditam ser tão bem providas dele que não costumam desejar possuí-lo mais do que acreditam já possuir. Então, qual seria a diferença entre senso comum e bom senso?  Podemos tomar o senso comum como conhecimento ingênuo, apressado e superficial?  Já o bom senso, sem renunciar esse momento inicial frágil, caminha em direção de um pensamento crítico e coerente?

À primeira vista, nos parece que sim. 

Sobre este ponto, veja o caráter provocador de Descartes na introdução à obra Discurso do Método em que apresenta a preocupação com o pensar correto, ou seja, com a razão e o bom senso “por natureza igual em todos os homens” e a importância do método como chave do saber. Entendendo-se por bom senso, um senso comum articulado e refletido (BENINCÁ, 2008, p. 182).

Discurso do Método

Introdução – Primeira Parte. 

O bom senso é a coisa mais bem distribuída do mundo: pois cada um pensa  estar tão bem provido dele, que mesmo aqueles mais difíceis de se satisfazerem com qualquer outra coisa não costumam desejar mais bom senso do que têm. Assim, não é verossímil que todos se enganem; mas, pelo contrário, isso demonstra que o poder de bem julgar e de distinguir o verdadeiro do falso, que é propriamente o que se denomina bom senso ou razão, é por natureza igual em todos os homens; e portanto que a diversidade de nossas opiniões não decorre de uns serem mais razoáveis que os outros, mas somente de que conduzimos nossos pensamentos por diversas vias, e não consideramos as mesmas coisas. Pois não basta ter o espírito bom, mas o principal é aplicá-lo bem. As maiores almas são capazes dos maiores vícios, assim como das maiores virtudes; e aqueles que só caminham muito lentamente podem avançar muito mais, se seguirem sempre o caminho certo, do que os que correm e dele se afastam.

Quanto a mim, jamais presumi que meu espírito fosse em nada mais perfeito que o do comum dos homens; muitas vezes até desejei ter o pensamento tão pronto, ou a imaginação tão nítida e distinta, ou a memória tão ampla ou tão presente como alguns outros. E não conheço outras qualidades, além destas que sirvam para a perfeição do espírito: pois, quanto à razão ou senso, visto que é a única coisa que nos torna homens e nos distingue dos animais, quero crer que está inteira em cada um, nisto seguindo a opinião comum dos filósofos, que dizem que só há mais e menos entre os acidentes, e não entre as formas ou naturezas dos indivíduos de uma mesma  espécie.”

DESCARTES, R. Discurso do método. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

Outra história interessante é a do filósofo Diógenes de Sinope (400-325 a. C.), famoso pelo estilo de vida pouco convencional. Menciona-se que ele caminhava pelas ruas de Atenas, em pleno sol do meio dia, com uma lamparina acessa, na tentativa de encontrar pelo menos um homem honesto em Atenas. Se observarmos a ideia que está por trás da conduta deste filósofo, ou seja, a tese de que há poucos inocentes na sociedade, estaremos tomando como ponto de partida a concepção do senso comum segundo a qual a venalidade é um traço congênito no ser humano, expresso no dito popular: todo mundo tem um preço.
Eis aqui um conhecimento popular baseado em sentimentos subjetivos, particulares, falível, assistemático, inexato, embora verificável na vida cotidiana.  Claro que a generalização  sobre a venalidade é abusiva, porque nem todas as pessoas ficam à mercê de situações que colocam à prova padrões morais. Há inúmeros exemplos e relatos a respeito de condutas que fragilizam as ideias do senso comum que se configuram como “concepções espontâneas”, “ingênuas”, “concepções prévias”, “pré-conceitos” (LAKATOS; MARCONI, 2000, p. 15-21).

Disso tudo sobressai uma pergunta: o conhecimento comum é sempre uma concepção que se afasta da verdade? Nem sempre. Às vezes satisfaz nosso imaginário; às vezes é o ponto de partida para o trabalho do pesquisador. Segundo Elli Benincá (2008, p. 186 e 193),

Como conhecimento, o senso comum é construído com base nas experiências realizadas no cotidiano cultural. As experiências individualizadas geram os sentidos particulares dos objetos e situações, cujo conjunto forma “o mundo” de cada ser humano, ao mesmo tempo em que se constituiu conhecimento e sabedoria, dos quais resultam o senso comum e sua praticidade.
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A concepção de mundo regida pelo senso comum oferece às pessoas um sentimento de segurança, como se tivessem o domínio sobre o mundo. Os saberes populares adquiridos na convivência do cotidiano cultural, mesmo quando carregados de fantasia, imaginação e preconceitos, são incorporados pelo senso comum como conhecimentos racionais e verdadeiros, sendo, por isso, transformados e assumidos como se fossem naturais.

Então, podemos dizer que o conhecimento do senso com surge no momento em que enfrentamos os fatos e precisamos resolver problemas no mundo da vida. Nesse sentido, aponta Urbano Zilles (1994, p. 156) que

Trata-se do conhecimento ou da racionalidade que surge da necessidade de enfrentar fatos imediatos, da necessidade de resolver problemas propostos por interesses os mais variados, sem qualquer prévia discussão. Raras vezes este conhecimento se faz acompanhar de explanações que esclareçam os fatos. Quando as apresenta, o faz sem indicar testes críticos que provem seu valor de explanação. Claro é que o conhecimento ordinário pode conter elementos de ciência, de filosofia e de religião.

O saber ordinário é, de um lado, praxístico-operativo, contendo uma visão do mundo, em geral pré-científica. Articula-se no contato imediato da vida. Vincula-se ao saber de uso e de organização das coisas. Por outro lado, o saber ordinário evoca o sentido humano, latente nas tradições. O saber ordinário é uma leitura do sentido da vida através da experiência imediata na tradição histórica.

Senso comum: o cotidiano cultural

Vimos que o senso comum nos oferece uma resposta à realidade. Permite-nos opinar, avaliar e julgar as coisas e as pessoas. Mas o senso comum não é um conhecimento “natural”, mas espontâneo. O que significa dizer que é construído no nosso cotidiano cultural, lugar em que habita nossas consciências.

Por cotidiano cultural ou mundo da vida, entende-se “o conjunto de objetos, situações e ações já ordenadas, a consciência, ao entrar em relação com essas situações, constrói-se segundo a experiência cultural ali realizada” (BENINCÁ, 2008, p. 184). É neste aspecto que as ideias do senso comum não são imparciais, mas subjetivas, particulares e expressam uma tradição.


O Conhecimento Científico

 “A ciência é uma construção humana”
(MORAIS, 2007, p. 23).

Costuma-se dizer que o conhecimento científico parte do senso comum, mas promove uma crítica às concepções ingênuas, procurando corrigi-las ou substituí-las. Entendendo-se por concepções ingênuas, uma forma simplória de compreender o mundo.

Mas por que substituir o senso comum pelo conhecimento científico?

É certo que a ciência como um fenômeno social tem grande impacto em nossas vidas.  Além dos benefícios tecnológicos que nos proporcionou, há um grande respeito pelo lugar que ocupa em nossa cultura.  

De um modo geral, todos identificam a figura do cientista como um gênio, um mago do saber, um mágico, porque os conhecemos a partir de suas descobertas geniais. Em geral acreditamos que o cientista é alguém especial, possui legitimidade. Na verdade, o cientista ou o pesquisador percorreu um longo caminho de refinamento da inteligência que forneceu as condições de possibilidade para o desenvolvimento de um olhar atento, curioso e inquieto.

Mas como funciona a ciência? Como as teorias são descobertas?

O fato é que as descobertas científicas não decorrem de um momento único criativo ou um lampejo, mas de um trabalho cuidadoso e incansável do pesquisador (FRENCH, 2009). É neste aspecto que Regis de Morais (2007, p. 21) observa que

A identificação da imagem do cientista com a imagem do mágico, muito encontrável entre o povo, resulta de uma especial omissão dos nossos livros de História. Estamos procurando dizer que as Histórias Gerais e as Histórias da Ciência, seja por problemas de espaço ou superabundância de outros dados informativos, noticiam apenas os êxitos científicos, deixando de conscientizar os leitores de que quase todos os sucessos da ciência foram precedidos de inúmeros fracassos. O chamado processo de “ensaio-e-erro” é vivido pelos cientistas em seu dia a dia, apesar dos recursos metodológicos de investigação. (...)
Lemos nos livros que Thomas Edson inventou a lâmpada elétrica de iluminação. Isto é maravilhoso, sem dúvida. Mas talvez não nos maravilhássemos tão ingenuamente se nos fosse dado a conhecer que Edson teve para mais de 1.150 experimentos fracassados antes de chegar ao êxito de sua invenção.

É neste sentido, que se define o conhecimento científico como um conhecimento rigoroso que busca investigar os fenômenos. E que surgiu da necessidade humana - a de compreender as relações universais, prever acontecimentos e, em particular, intervir na natureza (ARANHA; MARTINS, 2003).

Mas o que podemos entender pelo termo ciência?

A sua história nos leva a pensadores anteriores a Platão que já se preocupavam com a ideia de um saber não sensível, ou seja, episteme. Palavra grega que se opõe a doxa definida como opinião ou senso comum. Assim, o termo episteme compreendia a ideia do que é verdadeiro, organizado, desvinculado do mundo sensível, mundo das impressões (PETERS, 1993). Os pensadores modernos vincularam o termo ciência à doutrina que forma um sistema ou um conjunto de conhecimentos ordenados segundo princípios, já influenciados pela palavra latina scientia, que também significa conhecimento (LALANDE, 1993).

Foi na Grécia que surgiu um ideal de racionalidade que exigiu o afastamento das visões míticas, subjetivas, religiosas, em direção à idéia de coerência, ordem e controle, impulsionado pela própria experiência do mundo dos fatos e pela necessidade de ordenar a vida humana.

À semelhança do conhecimento filosófico que também busca a coerência, a ordem, o conhecimento científico se mostra como um saber contingente, sistemático e verificável. Todavia, não pode ser considerado como absoluto, pois a descoberta de novas técnicas resulta em novos conhecimentos.

Assim, quando pensamos no conhecimento da ciência como um saber contingente significa dizer que a verdade ou falsidade de determinado  saber ultrapassa  o pensamento abstrato em direção à necessidade de experimentação. O termo contingente se opõe ao termo necessário e significa dizer que algo pode ser ou não ser. É sistemático porque exige uma ordem lógica de ideias formando um sistema, um todo coerente que não está disperso ou desconexo.

A ciência e o método


O cientista utiliza um método na apreensão da realidade. A palavra método nos liga à idéia de um conjunto de procedimentos através dos quais é possível conhecer determinada realidade ou desenvolver determinados comportamentos.

Através do método podemos descobrir como chegar a um objetivo. É uma forma de pensar para se chegar à natureza de determinado problema para explicá-lo ou apenas estudá-lo. São regras elaboradas por estudiosos. Podemos percebê-lo em nossa vida cotidiana quando decidimos aprender uma língua estrangeira ou tocar um instrumento.  O aprendiz pode não perceber inicialmente que o seu mestre utiliza um método para ensinar sua música ou determinada língua. O método nos permite perceber um tema, elaborar uma hipótese, rever o acervo bibliográfico que temos sobre o tema, fazer experimentos, interpretar os resultados obtidos e formular conclusões (OLIVEIRA, 1997).

O conhecimento científico trabalha com hipóteses, ou seja, explicações provisórias sobre algum fenômeno que está sendo analisado e que provocou uma interrogação no  pensamento do cientista.  Trata-se de uma teoria provável que aguarda sua comprovação. Mas para que a hipótese formulada possa ser considerada científica é preciso que seja passível de verificação, ou seja, experimentação.

A ciência e a objetividade

O conhecimento científico ou conjunto de aquisições intelectuais aspira à objetividade, o que significa dizer que pretende que suas conclusões possam ser verificadas por todos. Alguns estudiosos da ciência entendem que o ponto mais controvertido do pensamento científico não é o método, mas a realidade a ser investigada. Aqui sobressai a seguinte pergunta: será que a realidade e a ideia que temos da realidade coincidem? O que é o real? Há identidade entre o pensamento e o pensado? (DEMO, 2007, p. 70-75).

A despeito de acreditarmos que o papel do cientista é estudar, teorizar, não interferir, não influenciar, manter certo rigor e disciplina diante de seu objeto de estudo, seu olhar não é neutro. O pesquisador é um ser social que influencia e é influenciado pela cultura, educação, pelo mundo simbólico, arte e ideologia. Neste caso, é preciso observar que o maior desafio para ciência está na sua relação com o real.

O pensamento científico parte de uma realidade construída, concebida. Por isso costuma-se dizer que a ciência é apenas um modo possível de perceber a realidade. Embora o cientista, no âmbito das ciências naturais se distancie de seu objeto, nas ciências sociais faz parte da própria realidade que investiga. É por isso que se pode afirmar que todo conhecimento é um pré-conhecimento, decorre de tradições herdadas, de pontos de partida ligados a visões de mundo. Todo cientista ao fazer ciência oferece um ponto de vista, uma interpretação.

Embora não exista isenção total do sujeito pensante em face do objeto, acreditamos que há um dever científico de seguir a objetividade. Como o cientista participa de um mundo da vida, seus enunciados estão repletos de valores que se revelam na escolha do tema e na seletividade da abordagem. O que significa dizer que o estudioso não se interessa por fatos em si, mas “fatos interessantes” e, é por isso que a ciência não investiga qualquer coisa, mas é direcionada a determinados objetos.

Aqui percebemos o sentido de objetividade científica. Para Popper (1985, p. 46) o termo objetivo assume o caráter de intersubjetivo, ou seja, um método que viabiliza a comunicabilidade da teoria. Permite que o cientista dialogue com outros, para que seus  enunciados possam ser analisados por outros. Trata-se da possibilidade de testar intersubjetivamente os enunciados de uma determinada teoria que se pretende científica.

No campo da ciência, a verdade encontra-se relativizada por inúmeras interrogações, refutações e mudanças de paradigma que experimentamos. Todas as transformações que marcaram o progresso da ciência contribuíram para a formação de um olhar mais criterioso em relação às certezas científicas. No sentido popperiano, o objetivo da ciência não deve ser a busca de certezas inabaláveis, mas a construção de hipóteses férteis que ofereçam respostas a algum problema.

O Conhecimento Filosófico

O saber da ciência se aproxima do saber filosófico porque ambos se afiguram como um saber sistemático e rigoroso. Mas o que é Filosofia? Quem é o filósofo?

Luckesi (1994, p. 21) observa que todos nós já ouvimos em algum momento alguém falar em Filosofia. Já ouvimos dizer que este nome decorre da união dos termos filon e sophia denotando o sentido de amigos da sabedoria. Segundo este autor a Filosofia “é um corpo de conhecimento constituído a partir de um esforço que o ser humano vem fazendo de compreender o seu mundo e dar-lhe um sentido” (p. 22). O fato é que todos nós buscamos um sentido para nossa existência e partilhamos certa concepção de mundo. Somos em certo sentido, filósofos. Se cada geração constrói seus valores, sua leitura do mundo, filosofar é uma atividade necessária e, neste ponto,

O que importa ter claro, por ora, é o fato de que a filosofia nos envolve, não temos como fugir dela. Ela é como o ar que respiramos, está permanentemente presente. Se nós não escolhermos qual é a nossa filosofia, qual é o sentido que vamos dar à nossa existência, a sociedade na qual vivemos nos dará, nos imporá a sua filosofia. (...) Quem não pensa é pensado por outros! (LUCKESI, 1994, p. 25)

No diálogo  denominado Eutidemo, Platão (428-348 a.C.), apresenta a Filosofia, como o uso do saber em proveito do homem. Nesse mesmo sentido, de nada serviria um saber a quem não sabe servir-se dele.  E com essa idéia a Filosofia se desenha, portanto, como a colidência entre o fazer e o saber valer-se daquilo que se faz (ABBAGNANO, 1982).

A partir desta destinação da Filosofia podemos dizer que há um método do filosofar que pode ser empreendido e que se desdobra em três momentos distintos, mas interligados, a saber: investigar valores vigentes, criticá-los e ressignificá-los (LUCKESI, 1994).

Considerando os estudiosos contemporâneos, ressaltamos a definição elaborada por Marilena Chauí, na obra Convite à Filosofia, certificando que a Filosofia não se confunde com Ciência stricto sensu, mas pode ser entendida como reflexão crítica sobre os procedimentos e conceitos científicos, pois se trata de um saber que é cronologicamente anterior ao surgimento da própria ciência.

Pode-se então, a partir desta ótica, definir Filosofia como a busca pela fundamentação teórica e crítica dos conhecimentos e práticas (CHAUÍ, 2000). Trata-se de um saber que se volta para as origens, as causas, a forma e o conteúdo dos valores éticos, políticos, artísticos e culturais. Assim, pode-se considerar que refletir filosoficamente significa tomar distância das coisas para poder enxergar novos ângulos, experimentar a realidade em diversos sabores (LORIERI, 2004, p. 17), por conseguinte a sua reflexão é radical, porque investiga a raiz, a origem de tudo o que existe.

Em filosofia não se trabalha com dados ou fatos puramente exteriores, mas com pensamentos. Disso resulta que o conhecimento filosófico não é um conhecimento ordinário, mas uma interioridade. Sem dúvida, opera a partir de um pensamento sistemático, o que significa dizer que não sendo mera opinião, segue uma lógica de enunciados precisos e rigorosos, a partir de conceitos ou ideias obtidos por procedimentos de pura racionalização. E é neste ponto que encontramos o elemento que a diferencia do conhecimento científico.

Conclui-se, que o saber filosófico é uma oposição à opinião, conhecida como senso comum. Um saber que exige consistência teórica. E quem é o filósofo?  Aquele que reúne curiosidade e muita paciência. Conforme insiste o filósofo francês Luc Ferry:

o filósofo é antes de tudo aquele que pensa que, se conhecemos o mundo, compreendemos a nós mesmos e compreendendo os outros, tanto quanto nossa inteligência o permite, vamos conseguir, pela lucidez e não por uma fé cega, vencer nossos medos (FERRY, 2007, p. 23).

Recordemos, neste ponto, o mito da caverna descrito por Platão na República, Livro VII, em que verificamos um prisioneiro recém-liberto e que nos mostra que a iniciação filosófica requer um percurso longo que se afasta do senso comum.

O conhecimento religioso

Quando se fala hoje em várias religiões estamos pensando num sentido muito diferente daquele compreendido pelos antigos. Pensamos em um sistema completo, constituído por um conjunto de afirmações especulativas, atos ou rituais que interferem diretamente na conduta moral do ser humano (LALANDE, 1993). Portanto, o conhecimento religioso difere do conhecimento filosófico e do científico, porque coloca suas bases em doutrinas reveladas e, por essa razão, assume o status de verdade absoluta, indiscutível, infalível.  Suas proposições não podem ser verificadas, mas decorrem da fé, da crença em um conhecimento revelado. Há uma dimensão metafísica como fundamento último que legitima o conhecimento e exige a adesão sem qualquer dúvida.

Enquanto o conhecimento científico se fundamenta na evidência dos fatos observáveis e a filosofia na lógica de seus enunciados, o conhecimento teológico se preocupa com a revelação divina.

O conhecimento teológico ou religioso passa necessariamente por representações abstratas que influenciam as ações no mundo da vida, bem como conferem sentido às angústias e inquietações da consciência. Neste ponto não só representa uma explicação sobre a origem de todas as coisas, mas também desvela o modo como determinada cultura entende e interpreta a sua própria existência.

Neste ponto não podemos deixar de observar o termo Religião que pode ser definido como

uma instituição social caracterizada pela existência de uma comunidade de indivíduos unidos: 1º pelo cumprimento de certos ritos regulares e pela adoção de certas fórmulas; 2º pela crença num valor absoluto, com o qual nada pode se equiparar, crença que esta comunidade tem por objeto manter; 3º pela relação do indivíduo com um poder espiritual superior ao homem, poder concebido quer como difuso, quer como múltiplo, quer, finalmente, como único, Deus (LALANDE, 1993).

A esse respeito, não há mais nada empolgante do que o embate entre o conhecimento religioso e a tese de Nicolau Copérnico. Durante muito tempo as pessoas acreditavam que a Terra era um disco imóvel em torno do qual girava o Sol. O resto era formado por nuvens habitadas por querubins e, claro, o inferno, cujas chamas ficavam nas profundezas.

Nicolau Copérnico, físico e astrônomo polonês observou o céu fundando o seu olhar em tabelas matemáticas e chegou à absurda conclusão que a Terra se movia. Foi assim que este investigador, em 1514, questionou as verdades impostas e apresentou a Terra como móvel orbitando em volta do Sol. Teólogos como Martinho Lutero e João Calvino ofendidos tomaram o presunçoso astrólogo como um tolo que acreditava perverter as Escrituras sagradas, as verdades reveladas. Seus estudos foram considerados mera teoria e assim Roma não se manifestou. Mais tarde quando o filósofo Giordano Bruno publicou diálogos exaltando a tese copernicana como fato incontestável, a inquisição romana o levou à fogueira (MANCHESTER, 2004, p. 131).
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 [- Giordano Bruno: “A natureza inteira é governada por uma profunda harmonia. Linhas invisíveis ligam as pequenas coisas da Terra como, por exemplo, o poder dos homens (...), a Lua provoca as marés (...), o Sol a vida e a morte dos homens. (...) Uma nova visão do cosmos deve corresponder a uma nova concepção do homem. (...) Nós queremos a autonomia do pensamento e da ciência de qualquer autoridade religiosa civil ou acadêmica. As cátedras aos sábios, não aos dogmáticos. (...) Os homens não são como as abelhas e as formigas que repetem sempre os mesmos atos. Eles constroem seu saber.” Cenas de "Giordano Bruno", Itália, 1973]

Enfim...

Todos os níveis de conhecimento se originam da curiosidade, que, por sua vez, enraíza-se nas necessidades para existência (MORAIS, 2007, p. 26). É neste ponto cabe observar que nenhum saber está desvinculado de sua relação com a cultura, com sua época.

O conhecimento do senso comum, o conhecimento científico, filosófico ou religioso são formas diferentes de se perceber a realidade. Estão presentes no atendimento das necessidades cotidianas, nas relações que se estabelece com a alteridade e, ainda, na reflexão, como flexão da consciência sobre si mesma. Verificou-se aqui que as diferentes noções de conhecimento destinam-se à esfera prática, são orientativos da ação humana.


Referências:

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 2. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982.

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. 3. ed. São Paulo: Moderna, 2003.

CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000.

DEMO, Pedro. Metodologia científica em ciências sociais. São Paulo: Atlas, 2007.

HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. Tradução António Correa. 7. ed. Coimbra: Arménio Amado, 1987.

LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

LAKATOS, Eva M; MARCONI, Marina de A. Metodologia científica. SP: Atlas, 2000.

LORIERI, Marcos Antônio. Filosofia na escola: o prazer da reflexão. Rio de Janeiro: Moderna, 2004.

FERRY, Luc. Aprender a viver. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.

MANCHESTER, William. Fogo sobre a Terra. A mentalidade medieval e o Renascimento. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

PETERS, F. E. Termos filosóficos gregos. Um léxico histórico. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1983.

OLIVEIRA, Silvio Luiz. Tratado de metodologia científica. São Paulo: Pioneira, 1997.

PLATÃO. Teeteto. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Pará: EDUSPA,  2001.

POPPER, Karl. Lógica da pesquisa científica. São Paulo: EDUSP, 1985.

ZILLES, Urbano. Teoria do conhecimento. Porto Alegre: EDIPURS, 1994.




[1] Esta lenda ou mito do “Boto-rosa”  tem sua origem no boto-cor-de-rosa, um mamífero muito semelhante ao golfinho, que habita a bacia do rio Amazonas. Se desejar saber mais visite o site: http://www.infoescola.com/folclore/a-lenda-do-boto/

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