terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Platão: a justiça e a fundação do Estado

Clara Maria Cavalcante Brum de Oliveira

Platão nasceu em 427 a.C. e faleceu na mesma cidade, Atenas, em 347 a.C. Filho de uma família da aristocracia ateniense dedicada à política, foi discípulo de Crátilo (séc. V a.C.) que por sua vez foi seguidor de Heráclito de Éfeso; posteriormente, Platão tornou-se discípulo de Sócrates.

Fundou sua Academia em 387 a.C., nos arredores de Atenas, em cujo pórtico figurava o lema: “Não passe destes portões quem não tiver estudado geometria”. Em seu pensamento encontramos a primeira formulação clássica da Filosofia, ou seja, a problemática do conhecimento como possibilidade de tomada da realidade. Uma preocupação direta sobre o método, indagando a possibilidade do conhecimento, numa verificação se o conhecimento passa pelos sentidos ou pela razão. Na linguagem platônica, os mundos sensível e inteligível como objetos de conhecimento.

Assim,  reproduziu em suas obras o jogo dialógico de Sócrates convidando o leitor a uma verdadeira investigação filosófica, inserindo-o na tarefa maiêutica de buscar a verdade pelo procedimento dialético.  A partir dessa perspectiva, em que constrói o seu pensamento filosófico, ancorado na crítica do conhecimento verdadeiro, tomou a Filosofia como um conjunto de princípios cuja função é pensar os fundamentos de sua cultura no intuito de reformá-la.  Por quê?

A realidade política de Atenas estava marcada pela injustiça e pela corrupção, fazendo com que Platão desistisse de ingressar na vida pública, o que fez, pois percebeu que a corrupção era um fenômeno desintegrador e no caso que caberia à Filosofia resgatar a ordem e a justiça nas relações sociais.

A República (Politéia) foi a obra que representou um compêndio do pensamento sobre a vida ideal. O tema desse estudo pode ser colocado da seguinte maneira:  quais as condições ideais para o florescimento da vida perfeita na comunidade natural?  Para investigar esse objeto partiu do pressuposto que a Filosofia era necessária como resposta a uma situação histórica injusta e ilegítima, concebeu a teoria das ideias ou formas puras resultando sua pesquisa num projeto político pedagógico que não deve ser reduzido ao sentido de uma utopia.

A  sua teoria das ideias marcou o início  da Metafísica Clássica, ou seja,  o estudo sobre a natureza dos conceitos e definições para o conhecimento verdadeiro. nesta teoria, Platão concebeu o mundo em uma dualidade: mundo sensível  e mundo inteligível  e podemos usar a narrativa da Alegoria da Caverna para compreender essa dicotomia estabelecida em sua filosofia.

Mundo material ou sensível:  lugar dos objetos visíveis, particulares, mutáveis, perecíveis. Também denominado de mundo das sombras, reflexos, conhecimento sensível, imediato, incompleto e superficial.
Mundo inteligível ou das ideias: lugar das realidades abstratas, perfeitas, eternas, imutáveis, inteligíveis, lugar das formas ou natureza essencial das coisas. A existência prévia das ideias condiciona o ser e o conhecer no mundo empírico.


A obra a República representou um projeto político pedagógico e contemplou a ideia de uma comunidade alternativa àquelas existentes, daí a relevância da educação no seu pensamento como marca singular de sua filosofia, que buscava edificar uma sociedade justa a partir de novos laços integrativos.  O seu programa pedagógico visava instaurar uma política fundamentada no saber cujo fim primeiro era norteado pelo princípio de justiça.

Nessa perspectiva, Platão é o primeiro pensador a defender o caráter público da educação, entregando ao poder comunitário a responsabilidade não só de sua execução como também sua formulação teórica.  Como o fundamento da educação é comunitário, e a política visa estabelecer laços integrativos, no interior da polis, a razão é a medida de tudo que possa ser perceptível pela inteligência e, nesse contexto, a justiça afigura-se como a virtude suprema do cidadão, o fundamento da polis.

Para Platão, sua carência, ou seja, a ausência da justiça, propicia a degeneração dos regimes políticos. Ser justo e a obedecer às leis configuraria a harmonia como cópia da ordem cósmica. Partindo dessa premissa temos que compreender o paralelo que o autor do Banquete estabeleceu entre a tripartição da alma e sua teoria sobre a polis.

Na República, Livro IV, Platão concebe a alma como tripartite, ou seja,  uma mesma se divide em uma parte racional, e outra irracional que, ao seu turno se subdivide em irascível (impulsos e afetos) e concupiscente (necessidades elementares). A parte racional é regida pela sabedoria ou prudência, capaz de estabelecer o que convém a cada um. A parte irascível corresponde à fortaleza e coragem que permite seguir os imperativos da razão. Já a parte da concupiscência está relacionada ao sentido das necessidades elementares.

As duas dimensões da parte irracional da alma devem se submeter à parte racional através da virtude da temperança ou moderação. A racionalidade deverá comandar. Com tais virtudes surge a virtude da justiça que estabelece o equilíbrio de cada uma das faculdades em seu âmbito próprio e função específica.

E a relação da tripartição da alma com a polis? Estabelecendo uma analogia da alma com a cidade, Platão apresenta o que podemos chamar de concepção organicista de sociedade, na qual a Cidade seria organizada a partir de três classes diferenciadas por suas funções próprias. A primeira seria a dos filósofos ou governantes, guiados pela sabedoria; a segunda dos guerreiros que defenderiam a polis interna e externamente, cultivando a fortaleza; a terceira seria constituída pelos artesãos (artífices), comerciantes, agricultores e aqueles que formavam a base econômica da cidade.

A classe dos guerreiros e dos artífices aceitam o domínio dos governantes pela ação da temperança ou moderação.  E assim como na alma, a justiça, na cidade, apresenta-se primordialmente para garantia do funcionamento do todo e da manutenção da hierarquia baseada nas tarefas específicas de cada classe. Assim como na alma as dimensões irracionais se submetem à racional, na cidade os guerreiros e trabalhadores manuais se submetem ao Filósofo, único legitimado ao exercício do poder.

O pensamento político de Platão inspirou-se no postulado segundo o qual a parte se subordina ao todo, o que significa dizer que as classes se subordinariam ao bem comum da cidade, dado pela razão divina, que por sua vez é contemplada pela dialética ascendente, o que leva Platão a operar uma inversão na concepção individualista da sofística quanto à relatividade das coisas, buscando a universalidade pela superação da individualidade absoluta.

Nesse modo de ver, o indivíduo se situa no plano coletivo e não em uma autonomia absoluta perante a  polis, que por sua vez, existe para tornar possível a vida humana. Assim, o horizonte do indivíduo é necessariamente o horizonte do cidadão, da polis.  Isso ficará mais evidente quando mais tarde e bem mais tarde, Benjamim Constant compara  a liberdade dos antigos com a liberdade dos moderno em seu célebre ensaio.

Ressalte-se, por oportuno, que as classes da República não se baseiam, segundo Platão, em uma ordem hereditária, já que o ponto fundamental estaria nas aptidões pessoais dos membros da polis, desenvolvidas pela cidade através do processo educacional.  Daí a analogia com o mito da tripartição da alma.

Quem deve governar? Por quê?

A aristocracia defendida por Platão, diferentemente daquela calcada na propriedade fundiária ou na riqueza advinda do comércio, é uma aristocracia do espírito cujo saber legitima o poder, porque só poderá governar a cidade aquele que é justo por conhecer e praticar ações justas, conduta comprometida e fundada, obviamente, no conhecimento filosófico.

Por isso, preocupado com as bases integrativas de sua sociedade, não admitia que o poder estivesse nas mãos daqueles que manipulavam a vida econômica ou a estrutura bélica, pois a cidade se constituiria em uma verdadeira tirania, ao passo que uma sociedade comandada por filósofos estaria ordenada sob princípios universais dados pela razão.

O sentido de ordem política ideal era,  para ele, o de justiça que correlaciona intrinsecamente lei e justiça. As leis são justas porque são editadas por quem pratica a virtude da justiça e a conhece em sua estrutura para além do plano das aparências, isto é, numa imagem divina. Nesse sentido, encontramos a ligação entre as duas perspectivas do conceito de justiça em Platão: justiça como ideia (forma pura) e justiça como virtude, ação do homem virtuoso.


Ao estudarmos o célebre livro VII, da República, que narra a Alegoria da Caverna em conjunto com sua teoria da reminiscência, compreendemos com maior clareza o que o fundador da Academia assinala na Carta VII, isto é, “só conhece a justiça àquele que é justo”, ou seja, só conhece a justiça aquele que a compreende na perspectiva divina, pelo conhecimento da alma e não dos sentidos, o conhecimento verdadeiro dado pela matriz dialética e desenvolvido pela educação.

• A caverna: o mundo sensível;
• Os prisioneiros: as pessoas comuns e sua doxa;
• Fogueira: a luz artificial;
• Sombras na parede:  a doxa;
• Prisioneiro que se liberta: filósofo;
• Saída da caverna: dialética ascendente;
• Homens com objetos: sofistas;
• O sol: a luz da razão;
• Retorno à caverna: diálogo filosófico;

Justiça e Alteridade

Platão, portanto enfatiza o agir justo na medida em que considera o outro como portador dos mesmos direitos para a superação da ótica individualista dos sofistas, assinalando comprometimento do homem com a sua polis. E observa através de seu personagem, Sócrates, que fazer a justiça é melhor que recebê-la,  sofrer a injustiça é melhor que praticá-la. Na República, afirma que o melhor modo de viver é o viver praticando a justiça, correlacionando, desse modo, os atos justos com  uma alma sadia. A justiça é uma virtude que fundamenta e fortifica a alma.

Na República, livro I, expressa a difusa ideia de justiça em um conceito preciso a partir do entendimento do poeta Simônides, (PLATÃO, República, 322c, 433a e 433e)  que afirmava a ideia de justiça como dar a cada um o que lhe é devido. Concepção grega e não romana. Amplia essa ideia para além da simples relação entre particulares e a relaciona diretamente com a estrutura de sua cidade. No dizer de Salgado: “O que é devido a cada um, o que lhe pertence por natureza é o posto que corresponde às suas aptidões e a função que cada um, por força dessas mesmas aptidões, pode desempenhar no Estado( PLATÃO, República, 433a; SALGADO, 1995, p. 27).

Concebe a justiça como uma preocupação política que repousa na ideia de igualdade. Uma igualdade geométrica, na medida em que garante a cada um o que lhe é devido, segundo suas aptidões. E assume, também, o caráter de universalidade enquanto se vincula à ideia de representação da harmonia do cosmos.

A justiça é um compromisso do cidadão com a cidade, na dedicação ao bom funcionamento da vida coletiva a partir das aptidões naturais de cada um. Sendo assim, Platão elabora duas vertentes do conceito de justiça: a justiça como ideia norteadora do direito e da lei, e a justiça como virtude norteada e determinada pela lei.

Justiça Retributiva Transcendente

Platão desenvolve um sentido de justiça adequado ao seu momento histórico: uma justiça retributiva e transcendente. Na República, livro X, a percebemos no mito de Er, narrativa que consagra o sentido de justiça retributiva, mas no além túmulo. O mito narra a história de um guerreiro chamado Er que vivencia a experiência da justiça como recompensa no pós-morte.




Referências:

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1982.
ARANHA, M. l. A.; MARTINS, M. H. P.  Filosofando: introdução à filosofia. 3. ed., São Paulo: Moderna, 2003.
BITTAR,  E. C. B.; ALMEIDA, G. A. A. Curso de filosofia do direito.  3. ed., São Paulo: Atlas, 2004.
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2001.
PLATÃO. A República.  8. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1996.
SALGADO, J. C. A ideia de justiça em Kant. Belo Horizonte: UFMG, 1995.



3 comentários: