Sócrates foi o filósofo que nos oportunizou interessantes
contribuições ao conhecimento, a começar pelo método e que provocou uma mudança
na Filosofia. Em que contexto viveu este
pensador?
A cidade de Atenas do Séc. V.
a.C. vivenciou uma controvérsia intelectual e política entre Sócrates e os
Sofistas. O período da Sofística foi o momento em que a cidade de Atenas se
tornou o centro do mundo grego, atraindo inúmeros intelectuais, numa relação
tensa. Também foi período de crise moral, em que há mudanças nas maneiras de
ser e agir. O filme
"Socrates" de Roberto Rosselini nos permite vivenciar essa
atmosfera.
Quem eram os sofistas? Como surgiu o termo sofista? Seria sophos?
E o que designa esse termo? Sophos designava a ideia de sábio, ou
aquele que possui alguma habilidade. Em política, poderia ser compreendido como
alguém com capacidade de conduzir os negócios na direção desejada, ou seja, a
capacidade de manipulação, persuasão. O termo, por outro lado, poderia designar,
também, aquele que adquiriu o bom-senso. E neste aspecto, Sócrates seria
considerado um sábio.
A palavra sofista, sophistés,
foi utilizada inicialmente como
sinônimo de sophos, sábio no sentido de conhecedor de alguma técnica e,
em particular, dos assuntos políticos. Todavia, no contexto político do séc. V
a.C. os termos sophos (sábio) e sophistés (sofistas) adquirem
novos significados. Sophistés passa a designar professores,
inicialmente poetas responsáveis pela educação prática e moral dos
cidadãos. E, mais tarde, aos
autores de obras em prosa ou verso.
Nesse contexto, quais as críticas proferidas em face dos sofistas?
Existem duas críticas feitas aos sofistas, a saber:
a)eram professsores remunerados
para exercer o ofício e que dissimulavam saber, mas na verdade iludiam e
mentiam;
b)eram considerados amorais,
pois eram remunerados para ensinar
um conhecimento técnico e não davam importância aos fins.
A crítica
Os autores clássicos em Filosofia
destacam que os sofistas foram vistos como causadores da corrupção e da
decadência política de Atenas, uma subversão de valores morais e políticos. "Eram
tidos como vendedores de ilusões, retóricos a serviço de qualquer causa bem
paga" (MUÑOZ, 2008).
As atividades eram diversas,
ensinavam em ambientes públicos ou privados, o que dependia da situação. Desenvolviam
um discurso propositado, um duelo ou conferência sobre algum tema
controvertido. O foco estava, sempre, no treinamento da técnica da retórica – a
arte da palavra. Essa habilidade era muito importante porque naquele momento
histórico somente as classes abastadas tinham acesso ao saber. É claro que esse
acesso se destinava aos meninos que precisavam desenvolver habilidades e
competências para atuar nas assembleias. A arte da palavra, a retórica era um
elemento de poder. "A retórica consistia num conjunto de regras que
permitiam àquele que os dominasse e pusesse em prática, no Tribunal ou
Assembleia, produzir em seus ouvintes determinado efeito" (MUÑOZ, 2008).
A crítica platônica
O seu maior crítico foi Platão, em cujo diálogo, Sofista, nos oferece algumas
definições para os sofistas, que podemos organizar da seguinte maneira:
a) Caçador interesseiro de jovens ricos;
b) Comerciante do saber que o vende no atacado e no varejo;
c) Atleta de combates retóricos;
d) Especialistas em controvérsias;
e) Filósofos falsificados que fortalecem as aparências, as
ilusões.
Olhando para outros personagens, os alunos, podemos destacar
que eram rapazes especiais. Qual o perfil dos alunos dos sofistas? Podemos
dizer que encontramos dois grandes grupos, a princípio:
a) Jovens de famílias abastadas e que desejavam engajar-se na
política e precisavam aprender retórica, além da formação geral;
b) Jovens que estudavam para tornarem-se sofistas – uma
profissão.
O problema da verdade
Segundo Muñoz (2008), dominando a
técnica da persuasão, os sofistas eram capazes de construir um discurso com a
aparência de verdadeiro, mas que não correspondia à verdade. A aparência engana
e o ouvinte é seduzido por ela, comprometendo os interesses da comunidade. Esse
foi o ponto de divergência com Sócrates. Muitos mencionam que estava no fato de
os sofistas serem bem remunerados, mas esse não era o ponto que incomodava
Sócrates. O que o assustava era o afastamento de um conhecimento verdadeiro que
requer um autoconhecimento como ponto de partida. A verdade que Sócrates
acreditara ser missão da Filosofia.
Para os sofistas, a verdade seria
aquilo que a técnica permite que seja percebida pelos interlocutores como
verdade, uma verdade comum. “A retórica é um meio de ampliar os limites
subjetivos (...) da verdade, rumo ao comum, não rumo ao objetivo” (MUÑOZ, 2008,
p.87). Nessa grande disputa surgiu a controvérsia entre physis
e nomos. E o que isso significa?
A controversia physis/nomos
Os sofistas contribuiram para o
surgimento da controversia entre physis e nomos. O termo physis era concebido,
dentre outros sentidos, como a natureza de determinada coisa, ou seja, a essência de um objeto, o conjunto de
propriedades essenciais do objeto. Por nomos, que traduzimos como lei,
costume, convenção ou norma, significa aceitar, admitir, aprovar. Então a ideia
de nomos seria a concepção de algo aceito, aprovado, acordado,
envolvendo um sentido normativo, a recomendação de uma conduta (MUÑOZ, 2008,
p.87).
Assim, desde a fase pré-socrática
até o momento da sofística,
normas, costumes e hábitos são considerados como dados que variam de acordo com
a região (MUÑOZ, 2008, p.87). Os gregos, assim, acreditaram que as leis humanas
inicialmente derivaram de um princípio, mas se afastaram dele se tornando leis
autônomas e diversas entre si.
Esse princípio originário seria a
fonte, o padrão de uma sociedade – a própria physis -, natureza das
coisas. A natureza das coisas
seria a origem de todos os valores com um sentido prescritivo supremo. Mais
tarde, essa percepção receberá o nome de jusnaturalismo (MUÑOZ, 2008,
p.88).
É por isso que nesse horizonte,
não há outro critério de Justiça para a sofística senão aquele baseado no
interesse que poderá ser individual ou de um grupo. Por isso, a técnica
ensinada servirá para obter eficácia na realização dos interesses individuais
(MUÑOZ, 2008, p.89).
Alberto Alonso Muñoz observa de
forma muito interessante que a sofística, que inaugura essa controversia
natureza/lei, lançou as bases para o contratualismo, corrente de pensamento que
ocupa lugar especial no período moderno. Vejamos
A polêmica
sobre a obediência à physis, assim descrita, ou ao nomos, às
tendências vistas como naturais ou à lei, remete ao problema fundamental da
origem da sociedade e que será objeto da investigação de Aristóteles no
primeiro livro da Política. Protágoras, porém, terá uma posição bastante
peculiar a esse respeito. Ele sustentará que o homem nasce num estado natural e
é progressivamente adaptado, pelas leis, à vida social. A vida social,
portanto, não é natural, mas artificial, produto da convenção (2008, p. 89).
Sócrates
O período da sofística é marcado por um momento de crise
moral. Neste horizonte, podemos observar duas ordens morais opostas:
a)Conservadora - a virtude é a
excelência de caráter - aqui encontramos Sócrates e seus discípulos; b)Vanguarda
- a virtude como sucesso pessoal.
Sócrates nada escreveu nesta
fase. Foi Platão que nos ofereceu a imagem de Sócrates, seu mestre e opositor
dos sofistas. Seu pensamento decorre do impacto de seus embates com os sofistas
em Atenas. "Um filósofo por excelência que é capaz de lutar até a morte
por um ideial intelectual" (MUÑOZ, 2008, p. 91- 93).
Apesar de ser um grande sábio foi
condenado à morte no ano de 399 a.C., após um processo em que foi acusado de
três crimes: a) corromper os jovens, com ideias subversivas; b) não crer nos
deuses da cidade; c) introduzir novos deuses (MUÑOZ, 2008, p. 93). Sua defesa perante o Tribunal ateniense
está na obra platônica sob o nome Apologia de Sócrates:
O que vós,
cidadãos atenienses, haveis sentido com o manejo dos meus acusadores, não sei;
o certo é que eu, devido a eles, quase me esquecia de mim mesmo, tão
persuasivos foram. Contudo, não disseram nada de verdadeiro. Mas, entre as
muitas mentiras que divulgaram, uma, acima de todas, eu admiro: aquela pela
qual disseram que deveis ter cuidado para não serdes enganados por mim, como
homem hábil no falar.
A acusação de corromper a juventude
ligava-se à atividade principal de Sócrates: “a atividade filosófica através do
diálogo”. Talvez a única acusação verdadeira, já que de fato mantinha-se na
tarefa de provocar os jovens, provocar o pensar sobre si mesmo através do diálogo.
Sócrates dizia que tinha o mesmo ofício de sua mãe, parteira, mas parteiro de
rapazes. Ensinava os rapazes a parir ideias.
O diálogo era uma forma de debate
que obedecia a regras claras de argumentação e intervenção dos interlocutores.
O interlocutor afirma uma ideia que será rebatida pelo outro e diante da
conclusão do adversário deverá concordar ou discordar apresentando outro
argumento. O jogo termina com o adversário fazendo o seu interlocutor rejeitar
a tese que ele mesmo propôs.
(MUÑOZ, 2008, p. 94). Trata-se do método maiêutico.
Método Maiêutico
Na obra Teeteto, Platão
nos oferece a explicação de Sócrates acerca de sua função análoga à de uma
parteira. Sócrates, filho de uma parteira, auxilia os jovens a parir ideias,
testando-as em face das críticas. Se não resistirem seriam consideradas
crenças, ideias falsas, doxa - senso comum.
Assim, o diálogo teria a
importante missão de permitir que os concernidos busquem juntos a verdade, ou seja, uma tese
objetivamente verdadeira). Por outro lado, a sofística pregando o relativismo,
trabalhava apenas a persuasão, o poder da mera opinião(MUÑOZ, 2008, p. 95). Diz-nos no Teeteto:
A minha arte obstétrica tem
atribuições iguais às das parteiras, com a diferença de eu não partejar mulher,
porém homens, e de acompanhar as almas, não os corpos, em seu trabalho de
parto. Porém a grande superioridade da minha arte consiste na faculdade de
conhecer de pronto se o que a alma dos jovens está na iminência de conceber é
alguma quimera e falsidade ou fruto legítimo e verdadeiro. Neste particular,
sou igualzinho às parteiras: estéril em matéria de sabedoria, tendo grande fundo
de verdade a censura que muitos me assacam, de só interrogar os outros, sem
nunca apresentar opinião pessoal sobre nenhum assunto, por carecer, justamente,
de sabedoria.
Os embates intelectuais de
Sócrates terminavam numa aporia, ou seja,
numa refutação sem conclusão. Mas a tarefa primordial já estava
cumprida, buscava-se desconstruir crenças corriqueiras. Qual era o objetivo? O objetivos era analisar
o conjunto de crenças individuais de um interlocutor e buscar uma verdade
dotada de objetividade. Buscava, portanto um padrão objetivo, ou seja, a forma
que em Filosofia significa definição rigorosa.
Há algum ganho nisso?
Sim, sempre que há conhecimento envolvido, há um ganho. Os envolvidos no diálogo podem experimentar um novo olhar. Podem perceber que aquilo que acreditavam saber, na verdade se afigura mais como um conhecimento sem consistência, senso comum. Com prudência e lucidez, podem livrar-se de uma crença falsa,
capaz de interferir nos juízos e comportamentos. Por isso, Sócrates considerava
a falha moral fruto da ignorância, uma falsa crença, uma noção distorcida,
um conhecimento que não se sustenta diante de um diálogo. O diálogo nos oportuniza o despertamento.
Referências:
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de
Filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1982.
ARANHA, M. l. A.; MARTINS, M. H.
P. Filosofando: introdução
à filosofia. 3. ed., São Paulo: Moderna, 2003.
CHAUÍ, Marilena. Convite
à filosofia. São Paulo: Ática, 2001.
PLATÃO. A República. 8. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian,
1996.
MUÑOZ, Alberto Alonso.
Características da Cosmologia Antiga: a sofística. In: MACEDO Jr., Ronaldo P. Curso
de Filosofia Política: do nascimento da filosofia a Kant. São paulo: Atlas,
2008. p. 75-90.
_____. O paradigma platônico. In:
MACEDO Jr., Ronaldo P. Curso de Filosofia Política: do nascimento da
filosofia a Kant. São paulo: Atlas, 2008. p. 91-116.
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