terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Algumas considerações sobre o problema felicidade


Wellington Trotta



Tomando por inspiração a introdução da obra "Ética a Nicômaco" de Aristóteles, posso asseverar que todo homem independente do seu grupo social, de sua classe econômica, de sua etnia, de sua cultura, de sua opção sexual, de sua orientação religiosa, de sua filiação política, de sua nacionalidade etc., tem como bem supremo a felicidade. Não há ser humano que não busque ser feliz. Ouso, contudo, afirmar que a felicidade, grande fim do indivíduo, parece escapar conceitualmente de nossas mãos pelo simples fato de ser impossível afirmar o que significa essa ideia desde que Descartes acenou com a assertiva de que a existência tem como premissa o "cogito ergo sum"; quando Kant afirmou que o objeto deveria gravitar em torno do sujeito; na afirmativa de Einstein quanto à relatividade ter se tornado núcleo da física contemporânea, e a incendiária tese de Heisenberg anunciando o princípio da incerteza que impõe “restrições à precisão com que se podem efetuar medidas simultâneas de uma classe de pares de observáveis em nível subatômico”, isto é, a impossibilidade de localizar o elétron em sua trajetória.

A palavra felicidade, segundo o Dicionário Caldas Aulete, significa “qualidade, condição ou estado de ser feliz; grande satisfação ou contentamento”. Por sua vez, etimologicamente, esse termo tem sua origem no latim "felicitas", associado à deusa Felicitas que cuidava da sorte dos indivíduos pela ausência de todo mal e a presença plena de todo bem. No panteão da mitologia romana a deusa Felicitas representava sucesso, boa sorte, fortuna. Ela teve papel considerável no ideário religioso da vida romana no período imperial, sendo retratada em moedas da época, tornando-se símbolo da riqueza e prosperidade do "estado" romano. Por outro lado, o termo beatitude que tem um sentido espiritual, origina-se do vocábulo latino "beatitudo" que possui os seguintes significados, segundo o mesmo dicionário: 1 - estado de serenidade, de felicidade; 2 - bem-aventurança, êxtase espiritual e religioso, associado à presença divina na vida eterna; 3 - serenidade resultante de atitude contemplativa, mística. Felicidade, porém, estaria, nesse caso, relacionada ao "status" de bem-estar quanto à condição do homem no mundo, ao passo que a beatitude seria uma condição existencial, ausência de sofrimento por conta de ter superado as adversidades do mundo. Assim, "felicitas" associa-se à "eudaimonia", enquanto "beatitudo" à ataraxia, comparando com os respetivos vocábulos gregos.

Tendo por fim somente o intuito de ser claro, muito embora a conquista do reconhecimento e do convencimento alheios sejam importantes, aceno para o aspecto de que, segundo o filósofo, a felicidade somente seria possível no marco da politicidade, ou seja, intimamente ligada ao mundo político-social como “entorno” do ser humano, muito diferente da beatitude estoica que apontava para a "ataraxia" como um bem espiritual recluso quanto a tudo que ofendesse o espírito de "aponia", isto é, ausência de dor. Como o filósofo é um pensador político tudo tende para esse fim, inclusive o indivíduo que somente pode desenvolver suas potencialidades no seio social, por isso, para o filósofo, a "polis" é o espaço da convivência humana na esfera da vida nobilitante, ou seja, a vida vivida somente se expressa na relação com o outro, longe do nosso contemporâneo conceito de felicidade no marco do individualismo. Essa vida com o outro provoca o conceito de alteridade em que se destaca a empatia como capacidade de colocar-se no lugar do outro, sem ser o outro ou mesmo abandonar sua condição original de estar fora do outro. Nesse sentido, a felicidade não somente é a busca do bem que considera necessário à vida como a necessidade de pensar no outro quando almeja-se esse ou aquele objeto de satisfação, bem-estar etc. Por isso afirmei que a pobreza, a deficiência física ou qualquer condição adversa face aos valores dominantes, postos pelo conjunto social, provocam a infelicidade. E por que provocam a infelicidade? Porque excluem pela irracionalidade os que são diferentes daqueles que têm a qualidade de pôr valores como bússola da existência.

Para reforçar esse ponto de vista cito o romance "Frankenstein" da consagrada escritora inglesa Mary Shelley, que retrata magistralmente a tese rousseauniana de que os homens por natureza são bons, mas é a sociedade com o seu conjunto de valores que destrói o que há de melhor nesses homens, tanto vítimas como algozes. Outrossim, a infelicidade tanto pode ter contornos psíquicos como sociais e políticos. A infelicidade de contorno psíquico é um grande mistério que toma dos nossos pesquisadores noites de sono como uma boa parte de suas vidas, estudando um problema que, segundo o meu juízo, tem origem na dimensão política (salvo os de ordem orgânica), ou seja, na esfera da vida social e seu quadro trágico de valores construídos a partir dos grupos que dominam os meios de produção da riqueza social. E a tragédia é bem maior quando dominantes e dominados naturalizam os preconceitos, as ideias e as relações postas como necessárias em si. Nesse sentido, a infelicidade que é uma construção historicamente determinada, somente se desconstrói no espaço e no tempo dialeticamente determinados por conta das contradições entre velhos e novos valores a partir das lutas que os indivíduos des-ideologizados travam contra estruturas carcomidas pela irracionalidade econômica.

Por conta desse ponto de vista a infelicidade tem natureza política pelo fato de ter surgido na esfera das relações humanas. Exemplo disso destacam-se os sofrimentos por ser negro em uma sociedade cujos valores são brancos; a tormenta por ser mulher em uma construção social machista; a luta constante por parte dos deficientes físicos que ressignificam suas vidas por conta da discriminação econômica em virtude de suas limitações; a vergonha de trazer um sotaque diferente daquele que se tornou modelo simbólico na esfera pública; o constrangimento por não ser socialmente bonito e ficar preso ao seu habitat em virtude das portas se fecharem; a luta titânica por ser um homem baixinho; a tristeza por ser gordo em um complexo estético a partir de modelos ideais etc. Observo, contudo, que no espaço e no tempo históricos somos responsáveis por ressignificar não só nossas vidas como as vidas daqueles que sozinhos não conseguiriam superar as adversidades impostas por modelos valorativos, onde todos saem perdendo. Portanto, só pela extinção dessas estruturas se extinguirá a infelicidade.

Nesse sentido, retomando o filósofo como referencial teórico, pondero que o conceito de felicidade, depois de identificá-la ao prazer e à honra, resta, assim, compreender que sendo o homem um ser racional, a felicidade refere-se ao que é perene, contemplativo, voltando-se para uma vida de pesquisa sobre a verdade. Assim, o filósofo afirma que "a felicidade tem, por conseguinte, as mesmas fronteiras que a contemplação, e os que estão na mais plena posse desta última são os mais genuinamente felizes, não como simples concomitante, mas em virtude da própria contemplação, pois que esta é preciosa em si mesma. E assim, a felicidade deve ser alguma forma de contemplação" (EN, 1178b).

Ainda, conforme acentua o filósofo, a felicidade como atividade racional só pode estar no marco da contemplação longe das atividades dependentes de sentidos externos. Logo, o filósofo acerta porque, sendo o homem um ser possuidor da racionalidade, a vida feliz deve ser conforme sua natureza. Sendo a felicidade uma contemplação ela "é atividade conforme à virtude, será razoável que ela esteja também em concordância com a mais alta virtude; e essa será a do que existe de melhor em nós. Quer seja a razão, quer alguma outra coisa esse elemento que julgamos ser o nosso dirigente e guia natural, tomando a seu cargo as coisas nobres e divinas, e quer seja ele mesmo divino, quer apenas o elemento mais divino que existe em nós, sua atividade conforme à virtude que lhe é própria será a perfeita felicidade" (EN, 1171a).

Por fim, segundo Edoardo Boncinelli, “a infelicidade é fruto da relação entre razão e memória, ou seja, deriva do confronto entre os objetivos que desejamos alcançar e o que efetivamente conseguimos alcançar”. Nesse caso, é o velho problema político entre o ideal e o real posto pelas condições materiais de existência. Outro tema.


Nenhum comentário:

Postar um comentário