Clara Maria C. Brum de Oliveira
Há muita contradição em razão da desigualdade que marca de maneira significativa a nossa sociedade contemporânea, uma sociedade da tecnologia e da informação. A cada
momento situações ofendem nossos valores morais: em razão da pobreza, crianças são vendidas por seus próprios pais a quem tem dinheiro, por exemplo. Muitos vivem em extrema pobreza. Centenas de
adolescentes e jovens não têm a possibilidade de frequentar e concluir o ensino fundamental e médio.
Diante de situações como estas e tantas outras, nos resta perguntar: O que é uma sociedade justa? Quais os princípios que poderiam regular uma concepção de justiça distributiva? A teoria da justiça de John Rawls é considerada como uma possível resposta a este problema. Uma resposta, no mínimo interessante para quem guarda essa preocupação republicana.
John Rawls (1921-2002), filósofo americano, foi
considerado um dos maiores teóricos da democracia liberal. Sua obra mais
significativa, Uma Teoria da Justiça, foi escrita em 1971 e encontra-se
inserida na linha de pensamento político inaugurada por John Locke. Segundo o
pensamento de Rawls, o indivíduo só experimentaria a plenitude na vida em
sociedade se estiver sob condições de justiça.
Segundo Wayne Morrison (2006, p.
468) ao comentar Rawls,
os antecessores intelectuais de Rawls são Kant (que introduz, entre outras coisas, a ideia da primazia do justo (right) sobre o bem (good) e a ideia reguladora do contrato social) e John Stuart Mill (que introduz o espírito de tolerância). A metodologia de Rawls é simples. Ele afirma a primazia da justiça na ordem social; aponta os dados que comprovam a existência de um certo grau de interesse pessoal comum entre as pessoas que constituem uma sociedade (sobrevivência) (...), requer-se um conjunto de princípios que nos permita escolher entre as disposições sociais e subscrever qualquer disposição tendo em vista a distribuição dos bens sociais.
O que é uma sociedade
justa? O que nos legitima a identificá-la?
Essa é a pergunta que John Rawls
apresentou em seu pensamento político no horizonte de um conflito perene entre
os bens disponíveis de uma sociedade, escassos, e o desejo ilimitado de
posse por parte dos indivíduos.No horizonte da relação bens-escassos versus desejo de posse. O que nos lembra neste último ponto o
pensamento hobbesiano. E, por conseguinte, a reflexão sobre quais os fins que buscamos com nossas ações?
O pensamento político de J.
Rawls foi elaborado ao longo do séc. XX, portanto numa fase marcada por dilemas morais
e políticos. E talvez essa atmosfera o tenha conduzido à elaboração de uma teoria da
justiça, cujo problema foi buscar um pensamento capaz de conjugar dois
principais valores morais do mundo moderno, aparentemente (ou intencionalmente)
inconciliáveis, se observados sob a ótica das grandes ideologias que dominaram
o séc. XX. E que valores são esses?
Liberdade e igualdade.
As ideologias do séc. XX tornaram
tais valores colidentes e, portanto, o mérito do pensamento de Rawls segundo especialistas foi construir
uma teoria da justiça que, ao mesmo tempo, se desvela prudente com o valor
liberdade, valor supremo da vida e o valor igualdade, valor fundamental para a
convivência social. Assim, diz-nos Rawls
A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de pensamento. Por mais elegante e econômica que possa ser, uma teoria deve ser rejeitada ou revista se for falsa; da mesma forma, por mais eficientes e bem-ordenadas que sejam as leis e instituições, devem ser reformuladas ou abolidas se forem injustas. (...) A única coisa que nos permite aceitar uma teoria errônea é a falta de uma teoria melhor; analogamente, uma injustiça só será tolerável quando for necessário evitar uma injustiça ainda maior. Por serem virtudes primeiras das atividades humanas, a verdade e a justiça são intransigentes (1971, p. 3/4).
É neste ponto que retoma alguns
aspectos da teoria clássica do contrato social e observa que uma sociedade justa, ou
seja, uma sociedade bem ordenada, é aquela que compartilha entre seus membros
uma concepção pública de justiça para regular a estrutura básica da sociedade. Neste horizonte,
partindo da pergunta-problema como se chegar a um entendimento comum sobre o
que é justo, Rawls imaginou uma situação hipotética, similar a um estado de
natureza que denominou de posição original (original position), apesar
de a ideia de uma justiça como equidade e de princípios morais derivarem de uma
escolha racional já estar presente no pensamento de Aristóteles com a régua de lesbos e de Immanuel Kant. Por isso, define
(...) uma sociedade é bem-ordenada quando não se destina apenas a promover o bem de seus membros, mas também é efetivamente regulada por uma concepção pública de justiça. Em outras palavras, uma sociedade na qual (1) todos aceitam e sabem que os outros aceitam os mesmos princípios de justiça e (2) na qual as instituições sociais básicas geralmente satisfazem e são geralmente conhecidas por satisfazerem esses princípios (RAWLS, 1971, p. 4/5).
O que seria a posição
original?
A posição original (original
position) é uma ficção útil para que os indivíduos possam escolher
princípios de justiça. Tais indivíduos, racionais e razoáveis, estariam sob um
véu de ignorância, ou seja, desconheceriam todas as situações que lhe trariam
qualquer vantagem ou desvantagem na vida social, tais como: classe social, posição
econômica, educação, concepção de bem etc. Todos estariam numa situação
equitativa, livres e iguais.
O objetivo de Rawls com a posição
original era pensar em estabelecer um procedimento imparcial capaz de permitir a
escolha de princípios consensuais justos (MORRISON, 2006, p. 470). Neste ponto,
o recurso ao véu de ignorância,
ou seja, a um suposto estado de natureza, não se destina à legitimação do poder
do Estado como nos contratualistas clássicos, exceto Rousseau, mas como um
recurso para fundamentar um processo de escolha de princípios de justiça que
são definidos por Rawls como:
Princípio de liberdade: cada
pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades
básicas iguais que sejam compatíveis com um sistema de liberdade para as
outras.
Princípio da igualdade: as
desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao
mesmo tempo: a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do
razoável (princípio da diferença); b) vinculadas a posições e cargos acessíveis
a todos (princípio da igualdade de oportunidades).
O que irá motivar nossas
escolhas por trás do véu de ignorância?
Para Rawls, as escolhas decorrem
do interesse pessoal, mas em razão do desconhecimento geral que as pessoas têm
sobre si mesmas, o interesse pessoal se converte no interesse de qualquer um. A
consequência é que princípios resultantes serão aqueles sobre os quais qualquer
pessoa teria voluntariamente concordado. Nesse sentido, Rawls formula três
princípios que constituem sua concepção de justiça:
Princípio da liberdade igual: A
sociedade deve assegurar a máxima liberdade para cada pessoa compatível com uma
liberdade igual para todos os outros.
Princípio da diferença: A
sociedade deve promover a distribuição igual da riqueza, exceto se a existência
de desigualdades econômicas e sociais gerar o maior benefício para os menos
favorecidos.
Princípio da oportunidade
justa: As desigualdades econômicas e sociais devem estar ligadas a postos e
posições acessíveis a todos em condições de justa igualdade de oportunidades.
Há uma situação hipotética em que
somos instados a imaginar que nos reunimos para firmar um contrato social que
inclua os princípios que nos mantêm unidos na vida. O apelo à posição original e
ao véu de ignorância destina-se à escolha de princípios de justiça. Em seu modo
de ver esta situação hipotética teria o efeito de invalidar a tese do benefício
próprio. Os envolvidos não sabem ou desconhecem
seu lugar na sociedade. “(...) cada um tampouco sabe qual é seu destino
na distribuição de recursos e aptidões naturais, sua inteligência, força e
coisas do gênero. Da mesma forme, ninguém sabe qual é sua concepção do bem” (MORRISON,
200, p. 470).
Assim, Rawls observou os princípios de justiça que devem ser escolhidos pelos indivíduos, racionais e razoáveis, na posição original, situação hipotética em que desconhecem qualquer informação particular sobre sua situação na sociedade: princípio da liberdade, da igualdade e o princípio da diferença.
Assim, Rawls observou os princípios de justiça que devem ser escolhidos pelos indivíduos, racionais e razoáveis, na posição original, situação hipotética em que desconhecem qualquer informação particular sobre sua situação na sociedade: princípio da liberdade, da igualdade e o princípio da diferença.
No princípio da liberdade estão as liberdade básicas
dos cidadãos, a liberdade política de eleger e ser eleito, a liberdade de
pensamentos, de consciência, de expressão, associação, de propriedade pessoal,
de proibição de prisão arbitrária, expropriação, etc. No princípio da igualdade,
propõe um sistema político em que as desigualdades sociais e econômicas devem
ser organizadas de modo a, simultaneamente,
ofertar maior benefício para os menos favorecidos e se vincularem a
cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade justa de
oportunidades. O princípio da diferença expressa a preocupação com a justa
distribuição de recursos econômicos. Para Rawls, o princípio da liberdade guarda
uma anterioridade e superioridade em face da igualdade (tradição liberal). O da
igualdade de oportunidade, por sua vez, é superior ao princípio da diferença.
O que isso significa?
Significa que é preciso
estabelecer uma prioridade entre os princípios. Assim, o princípio da liberdade igual tem prioridade
sobre os outros dois e o princípio da
oportunidade justa tem prioridade sobre o princípio da diferença. O que faz de Rawls, segundo os especialistas,
um liberal com preocupações igualitárias.
Quais são os argumentos de
Rawls em favor do princípio da diferença?
1)
O argumento intuitivo da igualdade de
oportunidades: as pessoas são moralmente iguais.
Este argumento apela à intuição segundo a qual o destino de uma pessoa deve depender das suas escolhas, e não das circunstâncias. Ninguém deve ter as suas escolhas e ambições negadas pela circunstância de pertencer a uma certa classe social. Logo, como as pessoas são moralmente iguais, o destino de cada um não deve depender da arbitrariedade dos acasos sociais ou naturais.
2) O argumento do contrato social hipotético.
Veja a situação hipotética a
seguir: cada um desconhece o seu lugar na sociedade, a sua classe e estatuto
social, os seus gostos pessoais e as características psicológicas, a sorte na
distribuição dos talentos naturais e que nem sequer conheces a sua concepção de
bem, ignorando que coisas fazem uma vida valer a pena. Que princípios de
justiça seriam escolhidos por detrás deste véu de ignorância? Aqueles que as
pessoas aceitariam porque não teriam como saber se seriam ou não favorecidas pelas
contingências sociais ou naturais.
Rawls coloca o justo acima do bem:
Toda pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo pode anular. A justiça nega que, para alguns, a perda da liberdade se torne justa devido a um maior bem compartilhado pelos outros (...); numa sociedade justa, as liberdades da igual cidadania são consideradas firmes; os direitos assegurados pela justiça não são sujeitos a barganhas políticas nem ao cálculo dos interesses sociais (RAWLS, 1971, p. 4)
Então, como concebeu uma sociedade justa?
Aquela em que há duas condições:
1. a igualdade de oportunidade a todos;
2. e o repasse dos benefícios auferidos preferencialmente aos membros menos privilegiados da sociedade – justiça social. Por isso, foi um defensor da justiça como equidade.
1. a igualdade de oportunidade a todos;
2. e o repasse dos benefícios auferidos preferencialmente aos membros menos privilegiados da sociedade – justiça social. Por isso, foi um defensor da justiça como equidade.
E o que seria necessário?
Que os mais afortunados aceitem com
benevolência diminuir sua participação material, minimizadas em favor dos
desassistidos. O princípio do altruísmo. Esse princípio implica a abdicação
consciente de certos privilégios e vantagens materiais legítimas em favor dos
socialmente menos favorecidos.
O princípio ético do altruísmo de
Rawls inverte o sentido de meritocracia em Platão, bem como refuta o sentido de
um darwinismo presente na cultura norte americana. No seu pensamento político,
a correção da desigualdade poderia ocorrer com a implementação de uma política
calcada na equidade. Para tanto, busca-se mecanismos legislativos
compensatórios para reparar as desigualdades, pela lei, com consentimento de
todos os membros da sociedade política.
Ocorre que em 1993, Rawls elabora
uma obra sob o título Liberalismo Político que representa uma nova
versão de sua teoria da justiça expressa na obra de 1971. Nesse sentido, parte
de um pluralismo valorativo, ou seja, da multiplicidade de concepções
abrangentes da vida social presentes no mundo contemporâneo e argumenta no
sentido de uma teoria política, pois, para ele, o maior desafio está em buscar
um consenso sobre o que é justo diante da multiplicidade de doutrinas
abrangentes. Assim, afirmou que sua teoria observa o que é justo e não o que é
moral, ético ou bom.
Quando afirmou que sua teoria
observa o que é justo e não o que é moral, ético ou bom, procurou enfatizar uma concepção pública de
justiça compartilhada pela comunidade social. Formulou a tese de um consenso sobreposto que exige a
utilização de uma razão pública para se alcançar o consenso. E o que entendeu por uma razão pública?
Por razão pública, entendeu a capacidade de colocar-se na esfera pública para
alcançar o entendimento em torno dos dissensos que resultam da pluralidade de
doutrinas abrangentes.
Críticas:
Os liberais:
O liberalismo, defensores do
capitalismo anárquico, cujo expoente é Robert Nozick, condenaram a ênfase na
igualdade de Rawls em favor da vigência absoluta da liberdade em seu sentido
negativo, ou seja, não interferência do Estado na vida privada.
Os comunitaristas:
Defendem a inserção do indivíduo
no coletivo e a superioridade da moral e da ética sobre a justiça
procedimental. Temos como expoentes dessa corrente, Charles Taylor, Michael
Sandel, Michael Walzer e MacIntyre.
Jürgen Habermas:
Debateu diretamente com Rawls e
defendeu uma democracia deliberativa. Para Habermas, os princípios e a
estrutura básica de uma sociedade devem ser definidos através de um
procedimento democrático radical aberto ao diálogo e ao entendimento. A obra A
inclusão do outro toca nesta crítica ao pensamento de Rawls.
Referências:
MORRISON, Wayne. Filosofia do Direito. Dos gregos ao
pós-modernismo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo:
Martins Fontes, 2008.
______. liberalismo político. São Paulo: Martins
Fontes, 2009.
OLIVEIRA, Nythamar de. Rawls.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
OLIVEIRA, Clara
Maria C. Brum de . Considerações sobre a posição original de J. Rawls. In: Trama
– revista dos pós-granduandos em Filosofia pela UERJ. N.7, 1996, p.
89-103.
VAZ, Faustino. Uma teoria da justiça de John Rawls.
Disponível em:
<http://criticanarede.com/pol_justica.html>. Acesso
em: 22 nov. 2011.