Clara Maria Cavalcante Brum de Oliveira
Platão nasceu em 427 a.C. e
faleceu na mesma cidade, Atenas, em 347 a.C. Filho de uma família da
aristocracia ateniense dedicada à política, foi discípulo de Crátilo (séc. V
a.C.) que por sua vez foi seguidor de Heráclito de Éfeso; posteriormente,
Platão tornou-se discípulo de Sócrates.
Fundou sua Academia em 387 a.C.,
nos arredores de Atenas, em cujo pórtico figurava o lema: “Não passe destes
portões quem não tiver estudado geometria”. Em seu pensamento encontramos a
primeira formulação clássica da Filosofia, ou seja, a problemática do
conhecimento como possibilidade de tomada da realidade. Uma preocupação direta
sobre o método, indagando a possibilidade do conhecimento, numa verificação
se o conhecimento passa pelos sentidos ou pela razão. Na linguagem platônica,
os mundos sensível e inteligível como objetos de conhecimento.
Assim, reproduziu em suas obras o jogo dialógico de Sócrates
convidando o leitor a uma verdadeira investigação filosófica, inserindo-o na
tarefa maiêutica de buscar a verdade
pelo procedimento dialético. A partir dessa perspectiva, em que constrói
o seu pensamento filosófico, ancorado na crítica do conhecimento verdadeiro, tomou
a Filosofia como um conjunto de princípios cuja função é pensar os fundamentos
de sua cultura no intuito de reformá-la. Por quê?
A realidade política de Atenas
estava marcada pela injustiça e pela corrupção, fazendo com que Platão
desistisse de ingressar na vida pública, o que fez, pois percebeu que a
corrupção era um fenômeno desintegrador e no caso que caberia à Filosofia
resgatar a ordem e a justiça nas relações sociais.
A República (Politéia) foi a obra que representou um
compêndio do pensamento sobre a vida ideal. O tema desse estudo pode ser
colocado da seguinte maneira: quais
as condições ideais para o florescimento da vida perfeita na comunidade natural? Para investigar esse objeto partiu do
pressuposto que a Filosofia era necessária como resposta a uma situação
histórica injusta e ilegítima, concebeu a teoria das ideias ou formas puras
resultando sua pesquisa num projeto político pedagógico que não deve ser
reduzido ao sentido de uma utopia.
A sua teoria das ideias marcou o início da Metafísica Clássica, ou seja, o estudo sobre a natureza dos conceitos
e definições para o conhecimento verdadeiro. nesta teoria, Platão concebeu o
mundo em uma dualidade: mundo sensível
e mundo inteligível e
podemos usar a narrativa da Alegoria da Caverna para compreender essa dicotomia
estabelecida em sua filosofia.
• Mundo material ou
sensível: lugar dos objetos
visíveis, particulares, mutáveis, perecíveis. Também denominado de mundo das
sombras, reflexos, conhecimento sensível, imediato, incompleto e superficial.
• Mundo inteligível ou das
ideias: lugar das realidades abstratas, perfeitas, eternas, imutáveis,
inteligíveis, lugar das formas ou natureza essencial das coisas. A existência
prévia das ideias condiciona o ser e o conhecer no mundo empírico.
A obra a República representou
um projeto político pedagógico e contemplou a ideia de uma comunidade
alternativa àquelas existentes, daí a relevância da educação no seu pensamento
como marca singular de sua filosofia, que buscava edificar uma sociedade justa
a partir de novos laços integrativos. O seu programa pedagógico visava instaurar uma política
fundamentada no saber cujo fim primeiro era norteado pelo princípio de justiça.
Nessa perspectiva, Platão é o
primeiro pensador a defender o caráter público da educação, entregando ao poder
comunitário a responsabilidade não só de sua execução como também sua
formulação teórica. Como o fundamento da educação é comunitário, e a
política visa estabelecer laços integrativos, no interior da polis, a
razão é a medida de tudo que possa ser perceptível pela inteligência e, nesse
contexto, a justiça afigura-se como a virtude suprema do cidadão, o
fundamento da polis.
Para Platão, sua carência, ou
seja, a ausência da justiça, propicia a degeneração dos regimes políticos. Ser
justo e a obedecer às leis configuraria a harmonia como cópia da ordem cósmica.
Partindo dessa premissa temos que compreender o paralelo que o autor do Banquete
estabeleceu entre a tripartição da alma e sua teoria sobre a polis.
Na República, Livro IV, Platão
concebe a alma como tripartite, ou seja,
uma mesma se divide em uma parte racional, e outra irracional que, ao
seu turno se subdivide em irascível (impulsos e afetos) e concupiscente
(necessidades elementares). A parte racional é regida pela sabedoria ou prudência,
capaz de estabelecer o que convém a cada um. A parte irascível corresponde à
fortaleza e coragem que permite seguir os imperativos da razão. Já a parte da
concupiscência está relacionada ao sentido das necessidades elementares.
As duas dimensões da parte
irracional da alma devem se submeter à parte racional através da virtude da
temperança ou moderação. A racionalidade deverá comandar. Com tais virtudes
surge a virtude da justiça que estabelece o equilíbrio de cada uma das
faculdades em seu âmbito próprio e função específica.
E a relação da tripartição da alma com a polis? Estabelecendo
uma analogia da alma com a cidade, Platão apresenta o que podemos chamar de concepção
organicista de sociedade, na qual a Cidade seria organizada a partir de
três classes diferenciadas por suas funções próprias. A primeira seria a
dos filósofos ou governantes, guiados
pela sabedoria; a segunda dos guerreiros
que defenderiam a polis interna e externamente, cultivando a fortaleza;
a terceira seria constituída pelos artesãos
(artífices), comerciantes, agricultores e aqueles que formavam a base econômica
da cidade.
A classe dos guerreiros e dos
artífices aceitam o domínio dos governantes pela ação da temperança ou
moderação. E assim como na alma, a
justiça, na cidade, apresenta-se primordialmente para garantia do funcionamento
do todo e da manutenção da hierarquia baseada nas tarefas específicas de cada classe.
Assim como na alma as dimensões
irracionais se submetem à racional, na cidade os guerreiros e trabalhadores manuais
se submetem ao Filósofo, único legitimado ao exercício do poder.
O pensamento político de Platão
inspirou-se no postulado segundo o qual a parte se subordina ao todo, o
que significa dizer que as classes se subordinariam ao bem comum da
cidade, dado pela razão divina, que por sua vez é contemplada pela dialética
ascendente, o que leva Platão a operar uma inversão na concepção individualista
da sofística quanto à relatividade das coisas, buscando a universalidade pela
superação da individualidade absoluta.
Nesse modo de ver, o indivíduo se
situa no plano coletivo e não em uma autonomia absoluta perante a polis,
que por sua vez, existe para tornar possível a vida humana. Assim, o horizonte
do indivíduo é necessariamente o horizonte do cidadão, da polis. Isso ficará
mais evidente quando mais tarde e bem mais tarde, Benjamim Constant
compara a liberdade dos antigos
com a liberdade dos moderno em seu célebre ensaio.
Ressalte-se, por oportuno, que as
classes da República não se baseiam, segundo Platão, em uma ordem
hereditária, já que o ponto fundamental estaria nas aptidões pessoais dos
membros da polis, desenvolvidas pela cidade através do processo
educacional. Daí a analogia com o
mito da tripartição da alma.
Quem deve governar? Por quê?
A aristocracia defendida por
Platão, diferentemente daquela calcada na propriedade fundiária ou na riqueza
advinda do comércio, é uma aristocracia do espírito cujo saber legitima
o poder, porque só poderá governar a cidade aquele que é justo por conhecer e
praticar ações justas, conduta comprometida e fundada, obviamente, no
conhecimento filosófico.
Por isso, preocupado com as bases
integrativas de sua sociedade, não admitia que o poder estivesse nas mãos
daqueles que manipulavam a vida econômica ou a estrutura bélica, pois a cidade
se constituiria em uma verdadeira tirania, ao passo que uma sociedade comandada
por filósofos estaria ordenada sob princípios universais dados pela razão.
O sentido de ordem política ideal
era, para ele, o de justiça que
correlaciona intrinsecamente lei e justiça. As leis são justas porque são
editadas por quem pratica a virtude da justiça e a conhece em sua estrutura
para além do plano das aparências, isto é, numa imagem divina. Nesse sentido,
encontramos a ligação entre as duas perspectivas do conceito de justiça em
Platão: justiça como ideia (forma pura) e justiça como virtude, ação do
homem virtuoso.
Ao estudarmos o célebre livro
VII, da República, que narra a Alegoria da Caverna em
conjunto com sua teoria da reminiscência, compreendemos com maior clareza o que
o fundador da Academia assinala na Carta VII, isto é, “só conhece a
justiça àquele que é justo”, ou seja, só conhece a justiça aquele que a
compreende na perspectiva divina, pelo conhecimento da alma e não dos sentidos,
o conhecimento verdadeiro dado pela matriz dialética e desenvolvido pela
educação.
• A caverna: o mundo sensível;
• Os prisioneiros: as pessoas comuns e sua doxa;
• Fogueira: a luz artificial;
• Sombras na parede:
a doxa;
• Prisioneiro que se liberta: filósofo;
• Saída da caverna: dialética ascendente;
• Homens com objetos: sofistas;
• O sol: a luz da razão;
• Retorno à caverna: diálogo filosófico;
Justiça e Alteridade
Platão, portanto enfatiza o agir
justo na medida em que considera o outro como portador dos mesmos direitos para
a superação da ótica individualista dos sofistas, assinalando comprometimento
do homem com a sua polis. E observa através de seu personagem, Sócrates,
que fazer a justiça é melhor que recebê-la, sofrer a injustiça é melhor que praticá-la. Na República,
afirma que o melhor modo de viver é o viver praticando a justiça,
correlacionando, desse modo, os atos justos com uma alma sadia. A justiça
é uma virtude que fundamenta e fortifica a alma.
Na República, livro I, expressa
a difusa ideia de justiça em um conceito preciso a partir do entendimento do
poeta Simônides, (PLATÃO, República, 322c, 433a e 433e) que
afirmava a ideia de justiça como dar a cada um o que lhe é devido. Concepção
grega e não romana. Amplia essa ideia para além da simples relação entre
particulares e a relaciona diretamente com a estrutura de sua cidade. No dizer
de Salgado: “O que é devido a cada um,
o que lhe pertence por natureza é o posto que corresponde às suas aptidões e a
função que cada um, por força dessas mesmas aptidões, pode desempenhar no
Estado”( PLATÃO, República, 433a; SALGADO, 1995, p. 27).
Concebe a justiça como uma
preocupação política que repousa na ideia de igualdade. Uma igualdade
geométrica, na medida em que garante a cada um o que lhe é devido, segundo suas
aptidões. E assume, também, o caráter de universalidade enquanto se vincula à
ideia de representação da harmonia do cosmos.
A justiça é um compromisso do
cidadão com a cidade, na dedicação ao bom funcionamento da vida coletiva a
partir das aptidões naturais de cada um. Sendo assim, Platão elabora duas
vertentes do conceito de justiça: a justiça como ideia norteadora do direito
e da lei, e a justiça como virtude norteada e determinada pela lei.
Justiça Retributiva Transcendente
Platão desenvolve um sentido de
justiça adequado ao seu momento histórico: uma justiça retributiva e
transcendente. Na República, livro
X, a percebemos no mito de Er, narrativa que consagra o sentido de
justiça retributiva, mas no além túmulo. O mito narra a história de um guerreiro
chamado Er que vivencia a experiência da justiça como recompensa no pós-morte.
Referências:
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de
Filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1982.
ARANHA, M. l. A.; MARTINS, M. H.
P. Filosofando: introdução
à filosofia. 3. ed., São Paulo: Moderna, 2003.
BITTAR, E. C. B.; ALMEIDA, G. A. A. Curso de filosofia do direito.
3. ed., São Paulo: Atlas, 2004.
CHAUÍ, Marilena. Convite
à filosofia. São Paulo: Ática, 2001.
PLATÃO. A República. 8. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian,
1996.
SALGADO, J. C. A ideia de
justiça em Kant. Belo Horizonte: UFMG, 1995.