terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Platão: a justiça e a fundação do Estado

Clara Maria Cavalcante Brum de Oliveira

Platão nasceu em 427 a.C. e faleceu na mesma cidade, Atenas, em 347 a.C. Filho de uma família da aristocracia ateniense dedicada à política, foi discípulo de Crátilo (séc. V a.C.) que por sua vez foi seguidor de Heráclito de Éfeso; posteriormente, Platão tornou-se discípulo de Sócrates.

Fundou sua Academia em 387 a.C., nos arredores de Atenas, em cujo pórtico figurava o lema: “Não passe destes portões quem não tiver estudado geometria”. Em seu pensamento encontramos a primeira formulação clássica da Filosofia, ou seja, a problemática do conhecimento como possibilidade de tomada da realidade. Uma preocupação direta sobre o método, indagando a possibilidade do conhecimento, numa verificação se o conhecimento passa pelos sentidos ou pela razão. Na linguagem platônica, os mundos sensível e inteligível como objetos de conhecimento.

Assim,  reproduziu em suas obras o jogo dialógico de Sócrates convidando o leitor a uma verdadeira investigação filosófica, inserindo-o na tarefa maiêutica de buscar a verdade pelo procedimento dialético.  A partir dessa perspectiva, em que constrói o seu pensamento filosófico, ancorado na crítica do conhecimento verdadeiro, tomou a Filosofia como um conjunto de princípios cuja função é pensar os fundamentos de sua cultura no intuito de reformá-la.  Por quê?

A realidade política de Atenas estava marcada pela injustiça e pela corrupção, fazendo com que Platão desistisse de ingressar na vida pública, o que fez, pois percebeu que a corrupção era um fenômeno desintegrador e no caso que caberia à Filosofia resgatar a ordem e a justiça nas relações sociais.

A República (Politéia) foi a obra que representou um compêndio do pensamento sobre a vida ideal. O tema desse estudo pode ser colocado da seguinte maneira:  quais as condições ideais para o florescimento da vida perfeita na comunidade natural?  Para investigar esse objeto partiu do pressuposto que a Filosofia era necessária como resposta a uma situação histórica injusta e ilegítima, concebeu a teoria das ideias ou formas puras resultando sua pesquisa num projeto político pedagógico que não deve ser reduzido ao sentido de uma utopia.

A  sua teoria das ideias marcou o início  da Metafísica Clássica, ou seja,  o estudo sobre a natureza dos conceitos e definições para o conhecimento verdadeiro. nesta teoria, Platão concebeu o mundo em uma dualidade: mundo sensível  e mundo inteligível  e podemos usar a narrativa da Alegoria da Caverna para compreender essa dicotomia estabelecida em sua filosofia.

Mundo material ou sensível:  lugar dos objetos visíveis, particulares, mutáveis, perecíveis. Também denominado de mundo das sombras, reflexos, conhecimento sensível, imediato, incompleto e superficial.
Mundo inteligível ou das ideias: lugar das realidades abstratas, perfeitas, eternas, imutáveis, inteligíveis, lugar das formas ou natureza essencial das coisas. A existência prévia das ideias condiciona o ser e o conhecer no mundo empírico.


A obra a República representou um projeto político pedagógico e contemplou a ideia de uma comunidade alternativa àquelas existentes, daí a relevância da educação no seu pensamento como marca singular de sua filosofia, que buscava edificar uma sociedade justa a partir de novos laços integrativos.  O seu programa pedagógico visava instaurar uma política fundamentada no saber cujo fim primeiro era norteado pelo princípio de justiça.

Nessa perspectiva, Platão é o primeiro pensador a defender o caráter público da educação, entregando ao poder comunitário a responsabilidade não só de sua execução como também sua formulação teórica.  Como o fundamento da educação é comunitário, e a política visa estabelecer laços integrativos, no interior da polis, a razão é a medida de tudo que possa ser perceptível pela inteligência e, nesse contexto, a justiça afigura-se como a virtude suprema do cidadão, o fundamento da polis.

Para Platão, sua carência, ou seja, a ausência da justiça, propicia a degeneração dos regimes políticos. Ser justo e a obedecer às leis configuraria a harmonia como cópia da ordem cósmica. Partindo dessa premissa temos que compreender o paralelo que o autor do Banquete estabeleceu entre a tripartição da alma e sua teoria sobre a polis.

Na República, Livro IV, Platão concebe a alma como tripartite, ou seja,  uma mesma se divide em uma parte racional, e outra irracional que, ao seu turno se subdivide em irascível (impulsos e afetos) e concupiscente (necessidades elementares). A parte racional é regida pela sabedoria ou prudência, capaz de estabelecer o que convém a cada um. A parte irascível corresponde à fortaleza e coragem que permite seguir os imperativos da razão. Já a parte da concupiscência está relacionada ao sentido das necessidades elementares.

As duas dimensões da parte irracional da alma devem se submeter à parte racional através da virtude da temperança ou moderação. A racionalidade deverá comandar. Com tais virtudes surge a virtude da justiça que estabelece o equilíbrio de cada uma das faculdades em seu âmbito próprio e função específica.

E a relação da tripartição da alma com a polis? Estabelecendo uma analogia da alma com a cidade, Platão apresenta o que podemos chamar de concepção organicista de sociedade, na qual a Cidade seria organizada a partir de três classes diferenciadas por suas funções próprias. A primeira seria a dos filósofos ou governantes, guiados pela sabedoria; a segunda dos guerreiros que defenderiam a polis interna e externamente, cultivando a fortaleza; a terceira seria constituída pelos artesãos (artífices), comerciantes, agricultores e aqueles que formavam a base econômica da cidade.

A classe dos guerreiros e dos artífices aceitam o domínio dos governantes pela ação da temperança ou moderação.  E assim como na alma, a justiça, na cidade, apresenta-se primordialmente para garantia do funcionamento do todo e da manutenção da hierarquia baseada nas tarefas específicas de cada classe. Assim como na alma as dimensões irracionais se submetem à racional, na cidade os guerreiros e trabalhadores manuais se submetem ao Filósofo, único legitimado ao exercício do poder.

O pensamento político de Platão inspirou-se no postulado segundo o qual a parte se subordina ao todo, o que significa dizer que as classes se subordinariam ao bem comum da cidade, dado pela razão divina, que por sua vez é contemplada pela dialética ascendente, o que leva Platão a operar uma inversão na concepção individualista da sofística quanto à relatividade das coisas, buscando a universalidade pela superação da individualidade absoluta.

Nesse modo de ver, o indivíduo se situa no plano coletivo e não em uma autonomia absoluta perante a  polis, que por sua vez, existe para tornar possível a vida humana. Assim, o horizonte do indivíduo é necessariamente o horizonte do cidadão, da polis.  Isso ficará mais evidente quando mais tarde e bem mais tarde, Benjamim Constant compara  a liberdade dos antigos com a liberdade dos moderno em seu célebre ensaio.

Ressalte-se, por oportuno, que as classes da República não se baseiam, segundo Platão, em uma ordem hereditária, já que o ponto fundamental estaria nas aptidões pessoais dos membros da polis, desenvolvidas pela cidade através do processo educacional.  Daí a analogia com o mito da tripartição da alma.

Quem deve governar? Por quê?

A aristocracia defendida por Platão, diferentemente daquela calcada na propriedade fundiária ou na riqueza advinda do comércio, é uma aristocracia do espírito cujo saber legitima o poder, porque só poderá governar a cidade aquele que é justo por conhecer e praticar ações justas, conduta comprometida e fundada, obviamente, no conhecimento filosófico.

Por isso, preocupado com as bases integrativas de sua sociedade, não admitia que o poder estivesse nas mãos daqueles que manipulavam a vida econômica ou a estrutura bélica, pois a cidade se constituiria em uma verdadeira tirania, ao passo que uma sociedade comandada por filósofos estaria ordenada sob princípios universais dados pela razão.

O sentido de ordem política ideal era,  para ele, o de justiça que correlaciona intrinsecamente lei e justiça. As leis são justas porque são editadas por quem pratica a virtude da justiça e a conhece em sua estrutura para além do plano das aparências, isto é, numa imagem divina. Nesse sentido, encontramos a ligação entre as duas perspectivas do conceito de justiça em Platão: justiça como ideia (forma pura) e justiça como virtude, ação do homem virtuoso.


Ao estudarmos o célebre livro VII, da República, que narra a Alegoria da Caverna em conjunto com sua teoria da reminiscência, compreendemos com maior clareza o que o fundador da Academia assinala na Carta VII, isto é, “só conhece a justiça àquele que é justo”, ou seja, só conhece a justiça aquele que a compreende na perspectiva divina, pelo conhecimento da alma e não dos sentidos, o conhecimento verdadeiro dado pela matriz dialética e desenvolvido pela educação.

• A caverna: o mundo sensível;
• Os prisioneiros: as pessoas comuns e sua doxa;
• Fogueira: a luz artificial;
• Sombras na parede:  a doxa;
• Prisioneiro que se liberta: filósofo;
• Saída da caverna: dialética ascendente;
• Homens com objetos: sofistas;
• O sol: a luz da razão;
• Retorno à caverna: diálogo filosófico;

Justiça e Alteridade

Platão, portanto enfatiza o agir justo na medida em que considera o outro como portador dos mesmos direitos para a superação da ótica individualista dos sofistas, assinalando comprometimento do homem com a sua polis. E observa através de seu personagem, Sócrates, que fazer a justiça é melhor que recebê-la,  sofrer a injustiça é melhor que praticá-la. Na República, afirma que o melhor modo de viver é o viver praticando a justiça, correlacionando, desse modo, os atos justos com  uma alma sadia. A justiça é uma virtude que fundamenta e fortifica a alma.

Na República, livro I, expressa a difusa ideia de justiça em um conceito preciso a partir do entendimento do poeta Simônides, (PLATÃO, República, 322c, 433a e 433e)  que afirmava a ideia de justiça como dar a cada um o que lhe é devido. Concepção grega e não romana. Amplia essa ideia para além da simples relação entre particulares e a relaciona diretamente com a estrutura de sua cidade. No dizer de Salgado: “O que é devido a cada um, o que lhe pertence por natureza é o posto que corresponde às suas aptidões e a função que cada um, por força dessas mesmas aptidões, pode desempenhar no Estado( PLATÃO, República, 433a; SALGADO, 1995, p. 27).

Concebe a justiça como uma preocupação política que repousa na ideia de igualdade. Uma igualdade geométrica, na medida em que garante a cada um o que lhe é devido, segundo suas aptidões. E assume, também, o caráter de universalidade enquanto se vincula à ideia de representação da harmonia do cosmos.

A justiça é um compromisso do cidadão com a cidade, na dedicação ao bom funcionamento da vida coletiva a partir das aptidões naturais de cada um. Sendo assim, Platão elabora duas vertentes do conceito de justiça: a justiça como ideia norteadora do direito e da lei, e a justiça como virtude norteada e determinada pela lei.

Justiça Retributiva Transcendente

Platão desenvolve um sentido de justiça adequado ao seu momento histórico: uma justiça retributiva e transcendente. Na República, livro X, a percebemos no mito de Er, narrativa que consagra o sentido de justiça retributiva, mas no além túmulo. O mito narra a história de um guerreiro chamado Er que vivencia a experiência da justiça como recompensa no pós-morte.




Referências:

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1982.
ARANHA, M. l. A.; MARTINS, M. H. P.  Filosofando: introdução à filosofia. 3. ed., São Paulo: Moderna, 2003.
BITTAR,  E. C. B.; ALMEIDA, G. A. A. Curso de filosofia do direito.  3. ed., São Paulo: Atlas, 2004.
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2001.
PLATÃO. A República.  8. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1996.
SALGADO, J. C. A ideia de justiça em Kant. Belo Horizonte: UFMG, 1995.



Sócrates e os Sofistas


 Clara Maria C. Brum de Oliveira

Sócrates foi o  filósofo que nos oportunizou interessantes contribuições ao conhecimento, a começar pelo método e que provocou uma mudança na Filosofia. Em que contexto viveu este pensador?

A cidade de Atenas do Séc. V. a.C. vivenciou uma controvérsia intelectual e política entre Sócrates e os Sofistas. O período da Sofística foi o momento em que a cidade de Atenas se tornou o centro do mundo grego, atraindo inúmeros intelectuais, numa relação tensa. Também foi período de crise moral, em que há mudanças nas maneiras de ser e agir. O filme  "Socrates" de Roberto Rosselini nos permite vivenciar essa atmosfera.

Quem eram os sofistas? Como surgiu o termo sofista? Seria sophos? E o que designa esse termo? Sophos designava a ideia de sábio, ou aquele que possui alguma habilidade. Em política, poderia ser compreendido como alguém com capacidade de conduzir os negócios na direção desejada, ou seja, a capacidade de manipulação, persuasão. O termo, por outro lado, poderia designar, também, aquele que adquiriu o bom-senso. E neste aspecto, Sócrates seria considerado um sábio.

A palavra sofista, sophistés,  foi utilizada inicialmente como sinônimo de sophos, sábio no sentido de conhecedor de alguma técnica e, em particular, dos assuntos políticos. Todavia, no contexto político do séc. V a.C. os termos sophos (sábio) e sophistés (sofistas) adquirem novos significados. Sophistés passa a designar professores, inicialmente poetas responsáveis pela educação prática e moral dos cidadãos.  E, mais tarde, aos autores de obras em prosa ou verso.

Nesse contexto, quais as críticas proferidas em face dos sofistas? Existem duas críticas feitas aos sofistas, a saber:

a)eram professsores remunerados para exercer o ofício e que dissimulavam saber, mas na verdade iludiam e mentiam;

b)eram considerados amorais, pois eram remunerados  para ensinar um conhecimento técnico e não davam importância aos fins.

A crítica

Os autores clássicos em Filosofia destacam que os sofistas foram vistos como causadores da corrupção e da decadência política de Atenas, uma subversão de valores morais e políticos. "Eram tidos como vendedores de ilusões, retóricos a serviço de qualquer causa bem paga" (MUÑOZ, 2008).

As atividades eram diversas, ensinavam em ambientes públicos ou privados, o que dependia da situação. Desenvolviam um discurso propositado, um duelo ou conferência sobre algum tema controvertido. O foco estava, sempre, no treinamento da técnica da retórica – a arte da palavra. Essa habilidade era muito importante porque naquele momento histórico somente as classes abastadas tinham acesso ao saber. É claro que esse acesso se destinava aos meninos que precisavam desenvolver habilidades e competências para atuar nas assembleias. A arte da palavra, a retórica era um elemento de poder. "A retórica consistia num conjunto de regras que permitiam àquele que os dominasse e pusesse em prática, no Tribunal ou Assembleia, produzir em seus ouvintes determinado efeito" (MUÑOZ, 2008).

A crítica platônica

O seu maior crítico foi Platão, em cujo diálogo,  Sofista, nos oferece algumas definições para os sofistas, que podemos organizar da seguinte maneira:

a) Caçador interesseiro de jovens ricos;
b) Comerciante do saber que o vende no atacado e no varejo;
c) Atleta de combates retóricos;
d) Especialistas em controvérsias;
e) Filósofos falsificados que fortalecem as aparências, as ilusões.

Olhando para outros personagens, os alunos, podemos destacar que eram rapazes especiais. Qual o perfil dos alunos dos sofistas? Podemos dizer que encontramos dois grandes grupos, a princípio:

a) Jovens de famílias abastadas e que desejavam engajar-se na política e precisavam aprender retórica, além da formação geral;
b) Jovens que estudavam para tornarem-se sofistas – uma profissão.


O problema da verdade

Segundo Muñoz (2008), dominando a técnica da persuasão, os sofistas eram capazes de construir um discurso com a aparência de verdadeiro, mas que não correspondia à verdade. A aparência engana e o ouvinte é seduzido por ela, comprometendo os interesses da comunidade. Esse foi o ponto de divergência com Sócrates. Muitos mencionam que estava no fato de os sofistas serem bem remunerados, mas esse não era o ponto que incomodava Sócrates. O que o assustava era o afastamento de um conhecimento verdadeiro que requer um autoconhecimento como ponto de partida. A verdade que Sócrates acreditara ser missão da Filosofia.

Para os sofistas, a verdade seria aquilo que a técnica permite que seja percebida pelos interlocutores como verdade, uma verdade comum. “A retórica é um meio de ampliar os limites subjetivos (...) da verdade, rumo ao comum, não rumo ao objetivo” (MUÑOZ, 2008, p.87). Nessa grande disputa surgiu a controvérsia entre  physis e nomos. E o que isso significa?
A controversia physis/nomos

Os sofistas contribuiram para o surgimento da controversia entre physis e nomos.  O termo physis era concebido, dentre outros sentidos, como a natureza de determinada coisa, ou seja,  a essência de um objeto, o conjunto de propriedades essenciais do objeto. Por nomos, que traduzimos como lei, costume, convenção ou norma, significa aceitar, admitir, aprovar. Então a ideia de nomos seria a concepção de algo aceito, aprovado, acordado, envolvendo um sentido normativo, a recomendação de uma conduta (MUÑOZ, 2008, p.87).

Assim, desde a fase pré-socrática até o momento  da sofística, normas, costumes e hábitos são considerados como dados que variam de acordo com a região (MUÑOZ, 2008, p.87). Os gregos, assim, acreditaram que as leis humanas inicialmente derivaram de um princípio, mas se afastaram dele se tornando leis autônomas e diversas entre si.

Esse princípio originário seria a fonte, o padrão de uma sociedade – a própria physis -, natureza das coisas. A  natureza das coisas seria a origem de todos os valores com um sentido prescritivo supremo. Mais tarde, essa percepção receberá o nome de jusnaturalismo (MUÑOZ, 2008, p.88).

É por isso que nesse horizonte, não há outro critério de Justiça para a sofística senão aquele baseado no interesse que poderá ser individual ou de um grupo. Por isso, a técnica ensinada servirá para obter eficácia na realização dos interesses individuais (MUÑOZ, 2008, p.89).

Alberto Alonso Muñoz observa de forma muito interessante que a sofística, que inaugura essa controversia natureza/lei, lançou as bases para o contratualismo, corrente de pensamento que ocupa lugar especial no período moderno. Vejamos

A polêmica sobre a obediência à physis, assim descrita, ou ao nomos, às tendências vistas como naturais ou à lei, remete ao problema fundamental da origem da sociedade e que será objeto da investigação de Aristóteles no primeiro livro da Política. Protágoras, porém, terá uma posição bastante peculiar a esse respeito. Ele sustentará que o homem nasce num estado natural e é progressivamente adaptado, pelas leis, à vida social. A vida social, portanto, não é natural, mas artificial, produto da convenção (2008, p. 89).


Sócrates

O período da sofística é marcado por um momento de crise moral. Neste horizonte, podemos observar duas ordens morais opostas: a)Conservadora -  a virtude é a excelência de caráter - aqui encontramos Sócrates e seus discípulos; b)Vanguarda -  a virtude como sucesso pessoal.

Sócrates nada escreveu nesta fase. Foi Platão que nos ofereceu a imagem de Sócrates, seu mestre e opositor dos sofistas. Seu pensamento decorre do impacto de seus embates com os sofistas em Atenas. "Um filósofo por excelência que é capaz de lutar até a morte por um ideial intelectual" (MUÑOZ, 2008, p. 91- 93).

Apesar de ser um grande sábio foi condenado à morte no ano de 399 a.C., após um processo em que foi acusado de três crimes: a) corromper os jovens, com ideias subversivas; b) não crer nos deuses da cidade; c) introduzir novos deuses (MUÑOZ, 2008, p. 93).  Sua defesa perante o Tribunal ateniense está na obra platônica sob o nome Apologia de Sócrates:

O que vós, cidadãos atenienses, haveis sentido com o manejo dos meus acusadores, não sei; o certo é que eu, devido a eles, quase me esquecia de mim mesmo, tão persuasivos foram. Contudo, não disseram nada de verdadeiro. Mas, entre as muitas mentiras que divulgaram, uma, acima de todas, eu admiro: aquela pela qual disseram que deveis ter cuidado para não serdes enganados por mim, como homem hábil no falar.


A acusação de corromper a juventude ligava-se à atividade principal de Sócrates: “a atividade filosófica através do diálogo”. Talvez a única acusação verdadeira, já que de fato mantinha-se na tarefa de provocar os jovens, provocar o pensar sobre si mesmo através do diálogo. Sócrates dizia que tinha o mesmo ofício de sua mãe, parteira, mas parteiro de rapazes. Ensinava os rapazes a parir ideias.

O diálogo era uma forma de debate que obedecia a regras claras de argumentação e intervenção dos interlocutores. O interlocutor afirma uma ideia que será rebatida pelo outro e diante da conclusão do adversário deverá concordar ou discordar apresentando outro argumento. O jogo termina com o adversário fazendo o seu interlocutor rejeitar a tese que  ele  mesmo propôs.
(MUÑOZ, 2008, p. 94).  Trata-se do método maiêutico.

Método Maiêutico

Na obra Teeteto, Platão nos oferece a explicação de Sócrates acerca de sua função análoga à de uma parteira. Sócrates, filho de uma parteira, auxilia os jovens a parir ideias, testando-as em face das críticas. Se não resistirem seriam consideradas crenças, ideias falsas, doxa - senso comum.

Assim, o diálogo teria a importante missão de permitir que os concernidos busquem juntos  a verdade, ou seja, uma tese objetivamente verdadeira). Por outro lado, a sofística pregando o relativismo, trabalhava apenas a persuasão, o poder da mera opinião(MUÑOZ, 2008, p. 95).  Diz-nos no Teeteto:


 A minha arte obstétrica tem atribuições iguais às das parteiras, com a diferença de eu não partejar mulher, porém homens, e de acompanhar as almas, não os corpos, em seu trabalho de parto. Porém a grande superioridade da minha arte consiste na faculdade de conhecer de pronto se o que a alma dos jovens está na iminência de conceber é alguma quimera e falsidade ou fruto legítimo e verdadeiro. Neste particular, sou igualzinho às parteiras: estéril em matéria de sabedoria, tendo grande fundo de verdade a censura que muitos me assacam, de só interrogar os outros, sem nunca apresentar opinião pessoal sobre nenhum assunto, por carecer, justamente, de sabedoria.



Os embates intelectuais de Sócrates terminavam numa aporia, ou seja,  numa refutação sem conclusão. Mas a tarefa primordial já estava cumprida, buscava-se desconstruir crenças corriqueiras.  Qual era o objetivo? O objetivos era analisar o conjunto de crenças individuais de um interlocutor e buscar uma verdade dotada de objetividade. Buscava, portanto um padrão objetivo, ou seja, a forma que em Filosofia significa definição rigorosa.

Há algum ganho nisso?

Sim, sempre que há conhecimento envolvido, há um ganho. Os envolvidos no diálogo podem experimentar um novo olhar. Podem perceber que aquilo que acreditavam saber, na verdade se afigura mais como um conhecimento sem consistência, senso comum. Com prudência e lucidez,  podem livrar-se de uma crença falsa, capaz de interferir nos juízos e comportamentos. Por isso, Sócrates considerava a falha moral fruto da ignorância, uma falsa crença, uma noção distorcida, um conhecimento que não se sustenta diante de um diálogo. O diálogo nos oportuniza o despertamento.



Referências:

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1982.
ARANHA, M. l. A.; MARTINS, M. H. P.  Filosofando: introdução à filosofia. 3. ed., São Paulo: Moderna, 2003.
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2001.
PLATÃO. A República.  8. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1996.
MUÑOZ, Alberto Alonso. Características da Cosmologia Antiga: a sofística. In: MACEDO Jr., Ronaldo P. Curso de Filosofia Política: do nascimento da filosofia a Kant. São paulo: Atlas, 2008. p. 75-90.

_____. O paradigma platônico. In: MACEDO Jr., Ronaldo P. Curso de Filosofia Política: do nascimento da filosofia a Kant. São paulo: Atlas, 2008. p. 91-116.

Algumas considerações sobre o problema felicidade


Wellington Trotta



Tomando por inspiração a introdução da obra "Ética a Nicômaco" de Aristóteles, posso asseverar que todo homem independente do seu grupo social, de sua classe econômica, de sua etnia, de sua cultura, de sua opção sexual, de sua orientação religiosa, de sua filiação política, de sua nacionalidade etc., tem como bem supremo a felicidade. Não há ser humano que não busque ser feliz. Ouso, contudo, afirmar que a felicidade, grande fim do indivíduo, parece escapar conceitualmente de nossas mãos pelo simples fato de ser impossível afirmar o que significa essa ideia desde que Descartes acenou com a assertiva de que a existência tem como premissa o "cogito ergo sum"; quando Kant afirmou que o objeto deveria gravitar em torno do sujeito; na afirmativa de Einstein quanto à relatividade ter se tornado núcleo da física contemporânea, e a incendiária tese de Heisenberg anunciando o princípio da incerteza que impõe “restrições à precisão com que se podem efetuar medidas simultâneas de uma classe de pares de observáveis em nível subatômico”, isto é, a impossibilidade de localizar o elétron em sua trajetória.

A palavra felicidade, segundo o Dicionário Caldas Aulete, significa “qualidade, condição ou estado de ser feliz; grande satisfação ou contentamento”. Por sua vez, etimologicamente, esse termo tem sua origem no latim "felicitas", associado à deusa Felicitas que cuidava da sorte dos indivíduos pela ausência de todo mal e a presença plena de todo bem. No panteão da mitologia romana a deusa Felicitas representava sucesso, boa sorte, fortuna. Ela teve papel considerável no ideário religioso da vida romana no período imperial, sendo retratada em moedas da época, tornando-se símbolo da riqueza e prosperidade do "estado" romano. Por outro lado, o termo beatitude que tem um sentido espiritual, origina-se do vocábulo latino "beatitudo" que possui os seguintes significados, segundo o mesmo dicionário: 1 - estado de serenidade, de felicidade; 2 - bem-aventurança, êxtase espiritual e religioso, associado à presença divina na vida eterna; 3 - serenidade resultante de atitude contemplativa, mística. Felicidade, porém, estaria, nesse caso, relacionada ao "status" de bem-estar quanto à condição do homem no mundo, ao passo que a beatitude seria uma condição existencial, ausência de sofrimento por conta de ter superado as adversidades do mundo. Assim, "felicitas" associa-se à "eudaimonia", enquanto "beatitudo" à ataraxia, comparando com os respetivos vocábulos gregos.

Tendo por fim somente o intuito de ser claro, muito embora a conquista do reconhecimento e do convencimento alheios sejam importantes, aceno para o aspecto de que, segundo o filósofo, a felicidade somente seria possível no marco da politicidade, ou seja, intimamente ligada ao mundo político-social como “entorno” do ser humano, muito diferente da beatitude estoica que apontava para a "ataraxia" como um bem espiritual recluso quanto a tudo que ofendesse o espírito de "aponia", isto é, ausência de dor. Como o filósofo é um pensador político tudo tende para esse fim, inclusive o indivíduo que somente pode desenvolver suas potencialidades no seio social, por isso, para o filósofo, a "polis" é o espaço da convivência humana na esfera da vida nobilitante, ou seja, a vida vivida somente se expressa na relação com o outro, longe do nosso contemporâneo conceito de felicidade no marco do individualismo. Essa vida com o outro provoca o conceito de alteridade em que se destaca a empatia como capacidade de colocar-se no lugar do outro, sem ser o outro ou mesmo abandonar sua condição original de estar fora do outro. Nesse sentido, a felicidade não somente é a busca do bem que considera necessário à vida como a necessidade de pensar no outro quando almeja-se esse ou aquele objeto de satisfação, bem-estar etc. Por isso afirmei que a pobreza, a deficiência física ou qualquer condição adversa face aos valores dominantes, postos pelo conjunto social, provocam a infelicidade. E por que provocam a infelicidade? Porque excluem pela irracionalidade os que são diferentes daqueles que têm a qualidade de pôr valores como bússola da existência.

Para reforçar esse ponto de vista cito o romance "Frankenstein" da consagrada escritora inglesa Mary Shelley, que retrata magistralmente a tese rousseauniana de que os homens por natureza são bons, mas é a sociedade com o seu conjunto de valores que destrói o que há de melhor nesses homens, tanto vítimas como algozes. Outrossim, a infelicidade tanto pode ter contornos psíquicos como sociais e políticos. A infelicidade de contorno psíquico é um grande mistério que toma dos nossos pesquisadores noites de sono como uma boa parte de suas vidas, estudando um problema que, segundo o meu juízo, tem origem na dimensão política (salvo os de ordem orgânica), ou seja, na esfera da vida social e seu quadro trágico de valores construídos a partir dos grupos que dominam os meios de produção da riqueza social. E a tragédia é bem maior quando dominantes e dominados naturalizam os preconceitos, as ideias e as relações postas como necessárias em si. Nesse sentido, a infelicidade que é uma construção historicamente determinada, somente se desconstrói no espaço e no tempo dialeticamente determinados por conta das contradições entre velhos e novos valores a partir das lutas que os indivíduos des-ideologizados travam contra estruturas carcomidas pela irracionalidade econômica.

Por conta desse ponto de vista a infelicidade tem natureza política pelo fato de ter surgido na esfera das relações humanas. Exemplo disso destacam-se os sofrimentos por ser negro em uma sociedade cujos valores são brancos; a tormenta por ser mulher em uma construção social machista; a luta constante por parte dos deficientes físicos que ressignificam suas vidas por conta da discriminação econômica em virtude de suas limitações; a vergonha de trazer um sotaque diferente daquele que se tornou modelo simbólico na esfera pública; o constrangimento por não ser socialmente bonito e ficar preso ao seu habitat em virtude das portas se fecharem; a luta titânica por ser um homem baixinho; a tristeza por ser gordo em um complexo estético a partir de modelos ideais etc. Observo, contudo, que no espaço e no tempo históricos somos responsáveis por ressignificar não só nossas vidas como as vidas daqueles que sozinhos não conseguiriam superar as adversidades impostas por modelos valorativos, onde todos saem perdendo. Portanto, só pela extinção dessas estruturas se extinguirá a infelicidade.

Nesse sentido, retomando o filósofo como referencial teórico, pondero que o conceito de felicidade, depois de identificá-la ao prazer e à honra, resta, assim, compreender que sendo o homem um ser racional, a felicidade refere-se ao que é perene, contemplativo, voltando-se para uma vida de pesquisa sobre a verdade. Assim, o filósofo afirma que "a felicidade tem, por conseguinte, as mesmas fronteiras que a contemplação, e os que estão na mais plena posse desta última são os mais genuinamente felizes, não como simples concomitante, mas em virtude da própria contemplação, pois que esta é preciosa em si mesma. E assim, a felicidade deve ser alguma forma de contemplação" (EN, 1178b).

Ainda, conforme acentua o filósofo, a felicidade como atividade racional só pode estar no marco da contemplação longe das atividades dependentes de sentidos externos. Logo, o filósofo acerta porque, sendo o homem um ser possuidor da racionalidade, a vida feliz deve ser conforme sua natureza. Sendo a felicidade uma contemplação ela "é atividade conforme à virtude, será razoável que ela esteja também em concordância com a mais alta virtude; e essa será a do que existe de melhor em nós. Quer seja a razão, quer alguma outra coisa esse elemento que julgamos ser o nosso dirigente e guia natural, tomando a seu cargo as coisas nobres e divinas, e quer seja ele mesmo divino, quer apenas o elemento mais divino que existe em nós, sua atividade conforme à virtude que lhe é própria será a perfeita felicidade" (EN, 1171a).

Por fim, segundo Edoardo Boncinelli, “a infelicidade é fruto da relação entre razão e memória, ou seja, deriva do confronto entre os objetivos que desejamos alcançar e o que efetivamente conseguimos alcançar”. Nesse caso, é o velho problema político entre o ideal e o real posto pelas condições materiais de existência. Outro tema.


Agir ético, atividade do espírito


Wellington Trotta



Na obra “Ética e sociologia da moral”, Émile Durkheim assevera que “o objeto da ética é acima de tudo estabelecer os princípios gerais dos quais os fatos morais são apenas aplicações particulares” (2003, p. 59), isto é, a Ética se constitui num sistema de princípios que busca, ordenadamente, separar o certo do errado, o bem do mal, o justo do injusto através de explicações racionais sobre os atos humanos. Complementando, embora de matiz teórica diferente, Adolfo Vázquez, no livro “Ética”, pondera que “a ética deve fornecer a compreensão racional de um aspecto real, efetivo, do comportamento dos homens” (1975, p. 12). Teoricamente os dois autores apontam para a compreensão da Ética como racionalização do agir, que por sua vez não se confunde com o mesmo.

Do ponto de vista do quotidiano, a ética é tida como uma atitude moral, ao passo que na perspectiva filosófica Ética é uma teorização sobre esse quotidiano moral. A Ética, desde sua origem, estuda a conduta humana a partir do critério de racionalidade capaz de pensar o agir sem levar em conta prescrições de condutas irrefletidas. Sinteticamente, a Ética é um ramo da Filosofia que estuda os atos justos e injustos, o valor da virtude, em que consiste a felicidade etc.

Filosoficamente, a Ética pode ser tomada por duas perspectivas, a saber: a ética do fim e a ética do móvel. Simplificadamente, esta se define pela análise das regras elaboradas por um agir em si mesmo, em que o prazer está no móvel do certo pelo correto, isto é, a intenção como móvel constante e habitual das ações em que se define como objeto da vontade humana sob regras que a dirigem. Aquela, a ética dos fins, traça o ideal como objeto do agir, a noção do bem como realidade perfeita, definida pelo ideal, uma vez que as regras são derivadas do fim, logo a felicidade é um objetivo cuja conduta social é uma dedução da necessária condição racional humana. A ética do fim pode ser tomada como conhecimento, visando objetivos, ao passo que a ética do móvel é um conhecimento da conduta humana em si. Na ética dos fins as regras são definidas pelo ideal; as regras da ética do móvel são cimentadas pelo agir em si.

A explicação ética dos chamados atos morais relaciona, diretamente, ao fato desses atos serem concretos e definidos, historicamente, como determinação social. Por isso o pensar ético só é possível sobre uma realidade real, histórica. Entretanto, muitos autores enfatizam que a Ética, mais do que uma disciplina filosófica, é, concretamente, uma ciência pela existência de objeto e método específicos, em que se distingue da moral, esta um tratado de condutas desejadas socialmente. Nesse caso, Vázquez afirma que “a ética é a teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em sociedade [...] Conjunto sistemático de conhecimentos racionais e objetivos a respeito do comportamento humano moral” (1975, p. 12-15). A razão filosófica que, originalmente, é política, pensa o olhar ético como uma perspectiva concreta na mutabilidade dos homens. No entanto, a tentativa de enquadrar a Ética como ciência, um sistema de análise universal, talvez repouse no fim de instruí-la enquanto saber capaz de produzir conhecimentos não particulares, ou seja, para além da cultura.

Contudo, na verdade, a Ética desde Sócrates vem se determinando como análise dos fatos morais longe das dogmatizações do senso comum. Isso porque o agir ético é um pensar do indivíduo quanto às possibilidades da ação junto ao conjunto social. O agir ético é uma dimensão reflexiva, uma realização do pensamento, ao passo que uma ação moral é a efetivação de princípios pensados. Nesse caso, toda moral é histórica por ser produção dos homens dentro de uma temporalidade objetiva em virtude das condições concretas de existência. Uma dada moral perde legitimidade quando suas condições reais não mais existem, e por isso toda moral é tão passageira quanto o senso comum. Este, ao confundir o real com o ilusório, inverte o agir ético, atividade do espírito, ao passo que o agir moral é realização quotidiana do espírito.